segunda-feira, 26 de julho de 2021

NÃO À INCINERAÇÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS!


NÃO À INCINERAÇÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS!



Outra vez o assombro da incineração de resíduos sólidos ronda Minas Gerias e o Brasil. Em Minas, a organização do Movimento Nacional de Catadores/as e sua extensa rede de apoio, em 2014, fez este assombro sumir, forçando a assembleia proibir a incineração na lei estadual de resíduos sólidos.

Dentre os inúmeros males que esta tecnologia traz, um dos mais graves é para a saúde pública. Nestes tempos de pandemia, com graves problemas de respiração e mais de meio milhão de pessoas mortas no País, falar de incineração do lixo chega ser imoral. 

A tecnologia da incineração de resíduos não constitui uma alternativa aceitável de destinação de resíduos sólidos, tanto por causa de sua tecnologia ultrapassada e de alto poder toxicológico quanto por causa de seu devastador impacto social.

A incineração consiste no emprego de temperaturas excessivamente elevadas, resultando em poluição grave do ar devido aos gases e resíduos tóxicos liberados durante a combustão dos mais variados e imprevisíveis dejetos, entre os quais se destacam os advindos de hospitais e indústrias, como materiais orgânicos, metais pesados e óleos, ou seja, os dejetos conhecidos como perigosos.

Em relação apenas ao que ocorre com a matéria orgânica presente em meio ao material incinerado, é sabido que se transforma em dióxido de carbono, vapor de água e cinzas altamente tóxicas. 

Segundo o manual organizado pelo Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis “uma unidade industrial de incineração é capaz de emitir quantidade considerável de dioxina, de furano e de outros efluentes comprovadamente perigosos para a saúde pública”. 

O mesmo manual observa que “uma unidade de incineração emite 33% a mais de CO2 do que as termoelétricas a carvão, usinas consideradas as mais poluentes do mundo”. 

O Relatório de Incineração, elaborado em 2007 pela Associação Francesa de Pesquisa Anticâncer alerta:

“Entre os gases liberados pela incineração, existem gases ácidos, como dióxido de enxofre (SO2), ácido clorídico e ácido fluirídico (HCLe HF), óxidos de azoto (NOx), monóxido de carbono (CO), vapor de água e dióxido de carbono (CO2), além de otros gases de efeito estufa (GEE) e muitos metais pesados (cádmio, tálio, chumbo, mercúrio etc.), assim como um grande número de substâncias cancerígenas e tóxicas para a reprodução da vida, chamadas de dioxinas e furanos, além de hidrocarbonetos”.

Todos esses produtos poluentes advindos da incineração atingem não apenas a atmosfera como também o solo e a água. Já existe um precedente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que decidiu contrariamente à utilização da prejudicial tecnologia da incineração. Em julgamento de Agravo de Instrumento (processo 1.0024.09.576.805-7/001), o Desembargador Manuel Saramago manteve ordem do Juiz da 5ª Vara Municipal da capital mineira determinando a paralização imediata das atividades de incineração de lixo tóxico hospitalar e industrial realizadas pela empresa SERQUIP, situada em Belo Horizonte, à época. 

A tecnologia da incineração é totalmente incompatível com a tecnologia da reciclagem, utilizada há muitos anos pelos Catadores de Material reciclável e suas organizações e que tem total amparo na Lei 12.305 de 2010 que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, bem como na Política de Resíduos sólidos no Estado de Minas Gerais.

Estudos demonstram que para manter os incinerados acesos, o material, matéria prima do trabalho dos catadores é indispensável e junto a isso, precisa-se do manutenção e do aumento do consumo, numa inversão e retrocesso total do que pregoa a Política Nacional de Resíduos Sólidos e toda a Política Nacional e internacional de construção de sociedades sustentáveis.

Por fim, é lamentável trazer a incineração para falar de "Lixo Zero". Este conceito tem a ver com a afirmação de que 100% do lixo pode ser reciclado, produzindo alimentação orgânica, trabalho, geração de renda, saúde e dignidade e não está relacionado com a queima do lixo e os graves problemas que isso pode trazer para a coletividade. 

A Política de resíduos sólidos integra a política de meio ambiente e um de seus princípios é o NÃO RETROCESSO. Chega de retroceder! O Brasil precisa avançar na garantia da dignidade humana e dignidade da natureza. Não à Incineração dos resíduos sólidos! Pela garantia de Políticas Públicas no âmbito Federal, Estadual e Municipal de Coleta Seletiva e reciclagem Popular com a inclusão e a contratação dos milhares de catadores e catadoras e suas organizações que, historicamente, prestam um serviço que é público, sem remuneração, reduzindo as desigualdades sociais e protegendo o meio ambiente.

Maria do Rosário Carneiro

Julho de 2021

domingo, 21 de fevereiro de 2021

CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2021: FRATERNIDADE E DIÁLOGO - COMPROMISSO DE AMOR - Um olhar a partir da urgente defesa da dignidade humana e planetária.

 


 Maria do Rosário Carneiro[1]




Outra vez é quaresma! Tempo no qual as igrejas cristãs fazem memória do deserto vivido por Jesus de Nazaré por quarenta dias, antes de iniciar sua vida pública, passando por diversas tentações. Passada essa experiência, Jesus reafirmou sua opção na defesa da vida de tal modo que, como consequência de seu ensinamento e de suas ações, foi condenado pelos poderes dominantes da religião, da economia e da política à pena de morte mais cruel de seu tempo, isto é, a morte na cruz. Contudo, antes da crucifixão, julgado e condenado por estes poderes que, atuando conjuntamente, atendiam ao comando do império romano que, não muito diferente dos tempos globalizados atuais, pretendia-se universal e temia qualquer tipo de ameaça.

 Como, assim, um homem do interior, de uma pequena cidade rural, de uma colônia quase invisível no mapa como era Nazaré da Galileia, filho de um marceneiro e de uma mulher pobre e camponesa, questionar os poderes do grande império? Como, assim, esse camponês jovem organizar trabalhadores/as, pescadores/as e questionar a obrigação de pagar tributos ao templo para serem abençoados por Deus e para recuperarem a saúde? Como, assim, este homem acolher mulheres, prostitutas, leprosos, ateus, cobradores de impostos, etc.? Como, assim, promover o diálogo com todas as crenças e modos de vida e ainda testemunhar que Deus, invocado sob tantos nomes, é o Deus do diálogo e do amor infinito?

É o que a 5ª Campanha da Fraternidade Ecumênica, em 2021, propõe: o diálogo como modo de amar e o amor como ética da vida. E não é de se assustar as resistências que logo apareceram de alguns grupos contrários ao tema e à metodologia da Campanha da Fraternidade. O diálogo libertador incomoda. Incomodou no tempo de Jesus também. Mas que tipo de diálogo a Campanha da Fraternidade Ecumênica  propõe?

Iniciativa assumida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) desde 1963, a Campanha da Fraternidade é um dos projetos importantes da Igreja Católica e das Igrejas cristãs que compõem Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC),[2] por isso, ecumênica. Trabalha, a cada ano, temas de fundamental importância para avançar na construção da justiça social e no projeto de sociedade que tenha como primazia a dignidade humana e planetária, a defesa dos direitos humanos e dos direitos da natureza, bem como a construção da Ecologia Integral, o que também podemos chamar de Sociedade do Bem-viver e Conviver.

Campanha é um conjunto de esforços e ações diversas, coordenadas e articuladas, visando alcançar um objetivo. Constantemente tomamos conhecimento de uma série de campanhas que são realizadas por distintos grupos e organizações, com as mais diversas intenções. Nesse caso, dizemos de uma campanha que vem sendo organizada pela Igreja, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pelo CONIC, que tem como objetivo a Fraternidade. 

Se buscarmos o significado de fraternidade nos mais diversos tipos de dicionários, remete-nos ao “laço de parentesco entre irmãos, irmandade”. Embora pareça algo simples de se viver, em tempos de tanto individualismo e intolerâncias, torna-se algo extremamente difícil e necessário. Ser fraterno, colocar-se como irmãs e irmãos uns dos/as outros/as é algo que se faz urgente para o bem da humanidade e isso não se faz sem amor, respeito e diálogo.

Utilizar-se da tática de fazer uma campanha para estimular a fraternidade entre as pessoas e das pessoas para com a natureza é uma ação sábia da Igreja que se repete todos os anos durante o período quaresmal, desde o ano de 1963. Mas, a Campanha da Fraternidade, quer estar para além de uma campanha. Quer se transformar em gestos concretos de compromisso com a fraternidade e não há fraternidade sem ações que promovam solidariedade, justiça social e a paz verdadeira, que é fruto da justiça.

 

Importante levar em consideração o ano em que a Campanha da Fraternidade foi assumida por toda Igreja do Brasil: 1963/64. Neste ano, o Brasil vivia tempos muito difíceis e brutais. da ditadura militar-civil-empresarial. A democracia havia sido arrancada das mãos do povo e o poder que governava não apenas retirou as liberdades, mas torturava, matava e fazia centenas pessoas desaparecerem, sobretudo se essas pessoas demonstravam compromisso com a fraternidade e com a justiça social.

Dizemos que a Campanha da Fraternidade foi assumida por toda Igreja do Brasil em 1964 porque não o foi assim desde seu embrião. Importante destacar que ela nasce no coração da Cáritas Brasileira, no nordeste do país. Em 1961, três padres responsáveis pela Cáritas no Rio Grande do Norte organizaram uma Campanha para arrecadar fundos para as atividades da Igreja local e, no ano seguinte, durante a quaresma, essa campanha recebeu o nome de “Campanha da Fraternidade”. Isto ocorreu na cidade de Natal. Diante da exitosa experiência, no ano seguinte, 1963, dezesseis dioceses do Nordeste também realizaram a Campanha da Fraternidade.

Diante disso, a CNBB, imbuída pelo espírito do Concílio Vaticano II[3], assumiu a Campanha da Fraternidade como projeto da Igreja no Brasil, à luz das Diretrizes Gerais de sua Ação Pastoral Evangelizadora. Lembrar o marco temporal em que nasce a Campanha da Fraternidade e seu contexto político, econômico e social é importante para falar desta Campanha. Cinquenta e seis anos depois, o País segue vivendo tempos difíceis, em que a fraternidade é sufocada pelos males do modelo econômico capitalista que prega o individualismo entre as pessoas, faz crescer a fome, o número de pessoas sem moradia digna, sem-terra, sem trabalho, vítimas da injustiça social, agrária, urbana e ambiental. Um olhar sobre os temas da Campanha da Fraternidade ao longo destes cinquenta e seis anos leva a perceber a diversidade de gritos que se fizeram ecoar e que seguem ecoando em nosso chão. 

Na década de 1970, a Campanha da Fraternidade trouxe temas como participação, reconciliação, promoção humana, serviço e vocação, a libertação por meio do amor, reconstrução, repartir o pão, comunidade, família, mundo do trabalho e migrações, perpassaram os temas da campanha. Já na década de 1980, os temas giraram em torno do mundo das migrações, saúde, educação, violência, vida para todos, a fome, luta pela terra, o menor, povo negro e comunicação. Com a virada do milênio, a dignidade humana aparece como tema, seguida da temática das drogas, povos indígenas, pessoas idosas, a questão da água, a promoção da paz, pessoas com deficiência, a Amazônia, defesa da vida, segurança pública, economia, a vida no planeta, saúde, juventude, tráfico humano, igreja e sociedade, cuidado com a casa comum, biomas brasileiros, superação da violência e políticas públicas. No ano de 2020 A Campanha da Fraternidade abordou o tema “Fraternidade e Vida: dom e compromisso,” inspirado no Evangelho de Lucas, “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,25-37). Neste ano de 2021, “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” é o Tema da Campanha da Fraternidade Ecumênica, com Lema Inspirado na carta aos Efésios 2,14a “Cristo é nossa Paz: do que era dividido, fez-se unidade”. 

Costumo escrever algo neste tempo de Campanha da Fraternidade e, quase sempre encontrando no tema profunda relação com as temáticas atuais e presentes em minha atuação como advogada popular. Já escrevi sobre as pessoas em situação de rua, os/as catadores/as de materiais recicláveis, as pessoas sem teto e na luta por moradia, pessoas atingidas pela mineração e o direito à assessoria técnica para a reparação integral. Este ano, sinto-me interpelada a escrever mais algumas linhas sobre o tema. Talvez retomando coisas já ditas e outras novas e este texto tem do que disse ano passado e em outros anos atrás. “Repetir, repetir. Até ficar diferente”, disse o poeta Manoel de Barros. É preciso repetir até que um dia transformemos esta sociedade marcada por tantas injustiças sociais. Transformar, sobretudo, este modelo político-econômico para o qual, quanto menos diálogo do povo com o povo, melhor as condições de lucro e poder. 

Como aponta o projeto de sociedade pautado na Ecologia Integral e na Sociedade do Bem-Viver e Conviver, tudo está interligado nesta “casa comum.” A Pandemia da Covid-19 demonstrou isso de modo muito concreto. Esta pandemia é resultado, sem dúvidas, dos males provocados por este sistema capitalista de morte. Para esse sistema, vale o lucro e não a vida. Sobretudo a vida de quem não detém poder econômico. Mas, a pandemia também mostra que, se o mal, praticado por alguns pode atingir a todos, o bem e o amor, por meio do diálogo e de ações concretas de defesa da vida, também podem ou podem ainda mais, atingir a todos e todas e a natureza, inclusive.  Recorro aqui ao ensinamento da Capitã Pedrina de Lourdes Santos (mãe de Axé) em umas das tantas lives denunciando as violências da mineração em Minas Gerais quando convidava a seguirmos “levando juntos a bandeira do respeito, do amor e de nossa liberdade” e ainda, falando da relação ser humano-natureza, interrogava: “ou você não entendeu que está tudo vive?”.

Dentre os objetivos da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021, ao conclamar para o diálogo como caminho para a paz, está denunciar as diferentes violências praticadas e legitimadas indevidamente em nome de Jesus. Nunca se viu tanto uso do nome de Deus para legitimar políticas de morte, de racismo, machismo, homofóbicas, criminalização dos pobres e de seus movimentos e organizações de luta. Aliás, não se pode dizer que nunca se viu. Já se viu muito na história da humanidade. Não é possível esquecer que a retórica do teocentrismo, do saber e da fé universal queimaram muitas mulheres chamando-as de bruxas, matou muitos seres humanos, simplesmente porque eram diferentes dos que aqui chegaram para invadir, na forma de acreditar, de ser de viver e se relacionar com a natureza e de amar. No Brasil, isso é uma prática desde a colonização. Como diferente do europeu colonizador que aqui chegou, invadindo e encobrindo (não descobrindo como pregado), como afirma Henrique Dussel[4], não houve diálogo. Exterminou-se e encobriu. E tudo isso em nome do lucro e de Deus. 

Os demais objetivos da Campanha apontam para um tempo novo. O que o povo organizado, que sempre resistiu às opressões e injustiças, vêm tentando construir: o compromisso com as causas que defendem a casa comum; a contribuição para superar as desigualdades; animar o engajamento e ações concretas de amor ao próximo; promover a cultura do amor como forma de superar a cultura do ódio; fortalecer a convivência e a comunicação inter-religiosa e eu acrescentaria com todas as formas de crer e não crer, independente de optar ou não por alguma religião e compartilhar experiências concretas de diálogo e convívio fraterno.

Dialogar supõe respeito e respeito supõe viver o amor para além de um sentimento, mas o amor como ética da vida e como exercício cotidiano de vida. O diferente de mim não é uma ameaça. É algo que pode me fazer melhor como ser humano. E em tempos de mundo virtual e de pandemia, com o necessário isolamento social, o diálogo se torna mais desafiador e necessário. É preciso exercitar. Como me sinto mais humana depois que passei a conviver com pessoas de religiões de matriz ancestral africana, pessoas que são ateias e/ou que ainda não se convenceram da existência de Deus; amigas e amigos homossexuais nas suas mais distintas formas de concepção de si mesmas. Pessoas que seguiram toda sua vida tentando se entender enquanto seres humanos neste mundo. Vivendo tantas formas de angústia e de sofrimento por não serem escutadas e entendida, por causa da falta de diálogo. Pessoas que preferiram interromper a vida porque já não mais suportavam a violência da falta de respeito, de acolhimento e de diálogo neste mundo cheio de moral perversa e de injustiças. O diálogo com o diferente me humaniza. 

A Campanha da Fraternidade Ecumênica convoca para o diálogo como caminho para a paz. E este é um dos caminhos. Os opressores investem no diálogo entre si e constroem muros e modos de matar. Precisamos construir e fortalecer o diálogo como ética da vida e como tática para a grande estratégia de construção da sociedade que queremos viver.

 É preciso reunir as bandeiras e, juntos e juntas, marcharmos na grande romaria da vida rumo à reconstrução da casa comum, da dignidade humana e planetária, pois, dignidade é direito. Isso não pode ser uma tarefa para amanhã. Precisa-se começar ou continuar ainda hoje.

É preciso sentarmos todos e todas na mesma mesa e partilharmos a vida, a fé, o pão, as alegrias e as dores. Mas, essa mesa, a da partilha e do diálogo, precisa ser nas calçadas e ruas das cidades onde moram nossos irmãs e irmãs de rua; nas celas superlotadas dos presídios; nas casas de prostituição onde muitas mulheres trabalham para ganhar o pão; nas carroças dos/as carroceiros/as expulsos das cidades e de seu ganha-pão; nos galpões de reciclagem onde pessoas esperam pelo que descartamos e por políticas públicas para sobreviver; nas pequenas propriedades rurais onde os camponeses e camponesas, todos os dias, são empurrados e expulsos/as pelo agronegócio; nos rios mortos pela lama maldita do capital e da mineração e nos lares das pessoas por ela atingidas; nos terreiros; nas casas das milhares de famílias brasileiras que foram contaminadas pela pandemia da Covid-19 e/ou que sequer puderam velar seus parentes e são vítimas do descaso com a saúde pública. A dignidade humana e planetária precisa ser respeitada.

Enfim, essa mesa do diálogo e da partilha precisa ser preparada em muitos lugares e situações. Como no caso do Nazareno da pequena Galileia, a vida terá a última palavra e não será tarde para aprendermos que diálogo é caminho para a fraternidade, a paz e o amor como ética e modo concreto de viver a vida. Que não seja apenas mais uma Campanha da Fraternidade. Caso ainda não consiga entender, respeite! O respeito também é diálogo. A violência não! E o Deus de Jesus escolheu o caminho do diálogo. Fez-se um ser humano e o humano também é diferente de Deus. Que a Fraternidade seja um modo cotidiano de vivermos a vida respeitando e dialogando com as diferenças, construindo, assim, a dignidade humana e planetária.

 

Belo Horizonte, 21 de fevereiro de 2021.

Com Ternura e Resistência.



[1] Advogada, Mestra em Direito (Novos Direitos, Novos Sujeitos) pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), integrante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP). Blog: www.mariadorosariocarneiro.blogspot.com Email: mrosariodeoliveira@gmail.com

[2] Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia (Siríaca), Aliança de Batistas do Brasil, Igreja Betesda e Centro ecumênico de serviços de Educação Popular.

[3] Concílio ecumênico convocado pelo Papa João XXIII no dia 25 de janeiro de 1959, 90 dias após o início de seu papado, objetivando uma avaliação da Igreja e de seus projetos no sentido de um maior compromisso com o Evangelho, opção preferencial pelos pobres e escuta dos clamores do povo.

[4] DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro. A origem do “mito da modernidade”. Petrópolis: Vozes, 1993.

 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Tributo à Tia Nai!



Tributo à Tia Nai!






As cartas iam e vinham dando notícias e falando das saudades. Sempre na esperança do encontro em breve, mas, quase sempre, sem saber exatamente o dia e o horário. A distância não era tão grande. De Pau D’arco (zona rural onde morávamos no município de Candeal/Ba) à Araci/Ba, uma distância de menos de 100 km. Mas, as condições materiais não facilitavam. Assim, a gente demorava um pouco para se ver. Dependia de um carro cedido pela prefeitura, de um amigo que tivesse carro ou que o povo de Araci viesse na camionete do tio Zé de Glorinha, cheia de gente, para nos visitar. As chegadas eram dias de intensa alegria. Inesperadas. Impossível esquecer.

Quando íamos de Pau D’arco para Araci, era sempre uma aventura: não consigo entender como cabiam tantas crianças e meus pais naquele carro que, quase sempre quebrava na estrada. Encostava em uma sombra até fazer o carro funcionar novamente. Nisso, alguém que oferecia um copo de tubaína para as crianças ou à sombra de uma árvore, esperávamos brincando.

 Minha mãe, com o coração ardendo de saudades de seus pais, irmãs, irmãos e sobrinhos/as, e cheia de expectativas, parecia resplandecer o rosto de alegria. Usava o vestido mais novo e bonito que tinha. Cabelos negros, grossos e pesados penteados, sorria. Nós, oito filhos/as explodíamos também de alegria. E a viagem seguia.

Chegando no município de Araci/Ba, ainda um pedaço de chão para chegar naquela casinha na roça. Impossível lembrar disso e não sentir o cheiro da melancia em fatias dentro da gamela de madeira que vovô João pegava na roça e partia para nós que, com a primarada, sentados no chão em torno da gamela, nos lambuzávamos deliciando cada fatia. Tudo era muita festa. Colocar uns aos outros no carrinho de mão e descer ribanceira abaixo, disparados, com gritos e festa e fugindo dos bodes que corriam atrás de nós. Montar o jumento com um e outro na garupa e cair pelo rabo do jegue. Passear na camionete do tio Zé nas estradas de chão, desviando dos ramos de mato que raspavam nossas cabeças, sentindo o cheiro da caatinga. A volta para casa fazia a gente reviver tudo aquilo com lembranças inesquecíveis.

Mas quero falar da “Tia Nai”, que hoje fez sua viagem para outra dimensão. Mainha sempre nos contava casos dela permeados de alegria. Era a tia do riso, do bom humor, da festa, da alegria. Como a gente se amava! Fazia as caretinhas e nos dengava. Impossível uma criança não amar a tia Nai. Aqueles gritinhos, aquele jeito feliz.

Mas a visita também se dava de Araci para Pau D’arco e quase sempre era em um domingo inesperado e normal. Minha mãe, de tanta saudade, costumava olhar sempre para o caminho. Parece que o coração intuía. Naquele tempo não tinha telefone para avisar. Bem cedinho, de repente, mainha olhava para estrada e via uma camionete azul cheia de gente apontar. Coração pulava e dizia: “É o carro de Zé de Glorinha!” Todo mundo corria para o terreiro. Da camionete o povo começava a gritar. A gente corria, organizava rapidamente a casa, colocava um “crote” na mesa e a festa começava. Abraços e festa. Catava a galinha no terreiro e o almoço, feito em mutirão, começava cheirar no fogão à lenha. Quando era tempo de laranja, pegava a faquinha e íamos chupar laranja debaixo dos pés. Tudo que se tinha de melhor em casa era partilhado na festa daquele encontro. O rosto de mainha resplandecia e aquelas irmãs mostravam para nós, sem muitas palavras, o tanto que se amavam e nos ensinavam a mais profunda lição de amor.

Tia Nai, sempre se destacava. Ia direto no rádio de pilha que ficava na sala, movia as estações até achar uma música, quase sempre na rádio “Morena Bela” de Serrinha, e começava dançar. Tudo se contagiava e a gente vivia, nestes encontros, a celebração da vida, da partilha e do amor. Tia Nai não morreu! Pessoas como ela não morrem. Ela se multiplicou em nós, sobrinhas/os, netas/os e bisnetos. Nossa imensa gratidão por sua existência em nossas vidas. Somos testemunhas de suas lutas, suas buscas, seus sonhos. Lutou até o fim. Que sua partida fortaleça a nossa luta na defesa da saúde pública e de qualidade. Que todas as pessoas deste país possam ter, de forma igual e justa, acesso aos seus direitos fundamentais. E que se abram caminhos para a imunidade contra os vírus que matam. Que os seres humanos compreendam que estamos interligados e precisamos nos salvar e nos curarmos mutuamente.

Gratidão, tia Nai! Gratidão tias, tios, Egídio, seu companheiro, primas e primos que, com muito amor, cuidaram deram o tempo todo. Ela vive em nós. Seguiremos construindo, cada dia, sua resistência, sua luta e sua alegria. Para nós que acreditamos que a morte não é o fim, Tia Nai seguirá presente. Sempre!

Belo Horizonte, 23 de novembro de 2020

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro

Filha da Zete

 

sexta-feira, 8 de maio de 2020

O Homem que Vive a Abençoar



O Homem que Vive a Abençoar

                                                    Bênção, painho!



Nossas conversas sempre são encerradas com uma bênção. Assim é comigo, mas também é com os demais filhos/as, netos/as, com vizinhos/as, amigos/as e com todas as pessoas que cruzam seu caminho.

Quando estamos juntos, a bênção para dormir e a bênção ao acordar, não pode faltar. À distância, pelo telefone, sua bênção é enviada sempre que nos falamos. Nestes tempos de pandemia, em que estamos conversando quase todos os dias e às vezes até mais de uma vez por dia, a bênção se repete a cada diálogo. Não precisa pedir. Ele o faz como algo natural de seu modo de ser.

As bênçãos partem espontaneamente parecendo brotar direto do coração. Tem algumas dessas bênçãos que se repetem desde que me dei conta de sua existência em minha vida como meu pai: Deus te proteja; Deus te crie para o bem; Deus te faça feliz; Deus te livre de todos os males; Deus seja a administração de sua vida; Deus oriente os teus caminhos, etc. Agora, em tempos de pandemia, tem acrescentado:  Deus te livre do corona vírus e também livre todas as pessoas que convivem com você. Fico pensando na força destas bênçãos e seu efeito em minha/nossas vidas, mas, penso sobretudo, no ato de abençoar. No fundo, ele não apenas abençoa, mas revela a bênção que ele é e que cada pessoa abençoada é para ele.

Abençoar é uma experiência mística. Na trajetória de libertação do povo hebreu, libertos da escravidão no Egito, Moisés aprendeu e recebeu a tarefa de ensinar sobre como abençoar: “O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor mostre a sua face e conceda-te a sua graça. O Senhor volva o seu rosto para ti e te dê a paz!” (Nm. 6, 24-27).

Sou de um lugar (Região do Sisal no Sertão da Bahia), de uma cultura e de uma geração em que abençoar faz parte dos princípios éticos de convivências entre as pessoas. Talvez hoje, com as tecnologias, isso tenha se perdido um pouco. Mas, abençoar, cooperar uns com os outros, são preceitos espontâneos da vida cotidiana. Desde as distintas parteiras que sempre estavam de plantão para ajudar as crianças nascerem de parto natural aos raizeiros (meu pai era um deles) que preparavam os remédios naturais oriundos do acúmulo da sabedoria popular passada de geração para geração e que curavam as pessoas de tantos males. Não se pode deixar de falar das benzedeiras, como minha comadre “Maria de Beu” e tantas outras, que, enquanto sentávamos na cadeirinha no terreiro, nos cobriam de bênçãos com diversos ramos verdes de alecrim, mastruz, cidreira, folhas da laranjeira e tantas outras mais. Isso tudo diz de um modo de viver a vida, cuja linha que circula tudo e todas as relações é a solidariedade e o ato de abençoar. Uma forma concreta de sociedade do bem-viver.

Voltando para o homem que vive a abençoar, hoje é o dia dele. Meu painho Miguel. Neste 8 de maio de 2020 ele completa 87 anos. Vida totalmente colocada à serviço das pessoas. Vive a abençoar. No fundo, a bênção é ele mesmo! Ele apenas a revela em cada bênção que dá. Ele é um mensageiro dos valores mais sublimes da vida. Ensina, com seus gestos, que a felicidade é fruto das coisas simples da vida. Basta viver com o essencial. Não aceitar as injustiças. Escutar as pessoas e a natureza. Sentir a chuva, o sol, a brisa. Acolher a natureza e as pessoas como irmãos. Ser grato. Ele é um mensageiro. Segue ensinando o valor da bênção e revelando-se bênção em nossas vidas e de tantos/as amigos/as que tem.

Parabéns, painho Miguel!
Hoje sou eu, somos nós que queremos lhe abençoar: Deus lhe faça sempre feliz! Amamos você!
Belo Horizonte, 08 de maio de 2020
Maria do Rosário de Oliveira Carneiro

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2020 E ATINGIDOS/AS PELA MINERAÇÃO VIU, SENTIU COMPAIXÃO E CUIDOU DELE”: A ASSESSORIA TÉCNICA COMO UM MODO DE CUIDADO


CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2020 E ATINGIDOS/AS PELA MINERAÇÃO
 VIU, SENTIU COMPAIXÃO E CUIDOU DELE”: A ASSESSORIA TÉCNICA 
COMO UM MODO DE CUIDADO

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro[1]


Lá a gente não funcionava à base de dinheiro. A gente trocava os frutos, as verduras, os ovos, o leite. Falamos para a empresa que queríamos revisar tudo do Cadastro. Muita coisa não condizia com a nossa cultura. Na proposta deles tinha vários tipos de plantas que nunca nem vimos, até pés de açaí (Luzia Queiroz – moradora de Paracatu de Baixo, Jornal A Sirene, 20/02/18).

Cartaz da Campanha da Fraternidade/2020 e imagem da Barragem de Fundão[2]


Introdução

A campanha da Fraternidade, iniciativa assumida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) desde 1964, neste ano de 2020 tem como tema “Fraternidade e Vida: dom e compromisso” e lema, inspirado no Evangelho de Lucas, “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10, 25-37). Objetiva “Conscientizar, à luz da Palavra de Deus, para o sentido da vida como dom e compromisso, que se traduz em relação de mútuo cuidado entre as pessoas, na família, na comunidade, na sociedade e no planeta, nossa Casa Comum”.[1]
O presente texto se propõe apresentar uma breve reflexão, inspirada na Campanha da Fraternidade/2020, voltando o olhar para as inúmeras vítimas (pessoas, natureza e biodiversidade) da mineração no Brasil, especificamente a partir das pessoas atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão em Mariana, MG., crime ocorrido em novembro de 2015. É também uma reflexão a partir da experiência vivida com essas pessoas, na luta cotidiana pela reparação integral dos direitos e testemunhando o sofrimento delas. Diante do convite da Igreja do Brasil para ver, julgar e agir a partir do tema da Campanha da Fraternidade em questão, não poderia deixar de trazer esta realidade por entender que é um dos grandes clamores oriundos do povo, das águas, da terra e de toda biodiversidade atingida pela mineração.

1.             Sobre a campanha da Fraternidade

Campanha é um conjunto de esforços e ações diversas, coordenadas e articuladas visando alcançar um objetivo. Constantemente tomamos conhecimento de uma série de campanhas que são realizadas por distintos grupos e organizações, com as mais diversas intenções. Nesse caso, dizemos de uma campanha que vem sendo organizada pela Igreja, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que tem como objetivo a Fraternidade.
Se buscarmos o significado de fraternidade nos mais diversos tipos de dicionários, remete-nos ao “laço de parentesco entre irmãos, irmandade”. Embora pareça algo simples de se viver, em tempos de tantas desumanidades, torna-se algo extremamente difícil e necessário. Ser fraterno, colocar-se como irmãs e irmãos uns dos outros é algo que se faz urgente para a humanidade. É preciso buscar inspiração, por exemplo, em Francisco de Assis[2], este ser humano que em seu tempo compreendeu-se irmão não apenas dos demais seres humanos, mas de toda natureza, chamando de irmão, o sol, a lua, a terra, o ar, etc., uma espécie de anúncio para a importância de uma concepção biocêntrica e não mais antropocêntrica da vida. São Francisco já parecia querer dizer da importância de reconhecer a natureza, os animais e toda biodiversidade como sujeitos de direitos.
Trazemos Francisco de Assis, mas, muitos são os exemplos de seres humanos que “passaram” e que permanecem entre nós, vivendo e sendo fraternidade, ou melhor, tendo a fraternidade como projeto de vida. Destacamos, nesse sentido, como brilhantemente lembra o cartaz da Campanha da Fraternidade desse ano, irmã Dulce, conhecida como “Irmã Dulce dos Pobres”. Mulher nordestina que foi reconhecida como santa pelo modo de viver a vida se fazendo fraterna, irmã das pessoas empobrecidas. O Vaticano lhe concedeu este título em 2019, mas o povo baiano já a reconhecia santa a muito tempo. O povo das periferias de Salvador já não tinha dúvidas quanto a isso. Ela é uma inspiração de vida em fraternidade, de ser fraternidade.
Utilizar-se da ação estratégica de fazer uma campanha para estimular a fraternidade entre as pessoas e das pessoas para com a natureza é uma ação sábia da Igreja que se repete todos os anos durante o período quaresmal, desde o ano de 1964. Mas, a Campanha da Fraternidade, quer estar para além de uma campanha. Quer se transformar em gestos concretos de compromisso com a fraternidade e não há fraternidade sem ações que promovam solidariedade, justiça social e a paz, que é fruto da justiça.
Importe levar em consideração o ano em que a Campanha da Fraternidade foi assumida por toda Igreja do Brasil: 1964. Neste ano, o Brasil vivia tempos difíceis. Estava instaurada a ditadura militar-civil-empresarial. A democracia havia sido arrancada das mãos do povo e o poder que governava o país não apenas retirou as liberdades, mas torturava, matava e fazia muitas pessoas desaparecerem, sobretudo se essas pessoas demonstravam compromisso com a fraternidade e com a justiça social.
Dizemos que a Campanha da Fraternidade foi assumida por toda Igreja do Brasil em 1964 porque não o foi assim desde seu embrião. Importante destacar que ela nasce no coração da Cáritas Brasileira, no nordeste do país. Em 1961, três padres responsáveis pela Cáritas no Rio Grande do Norte organizaram uma Campanha para arrecadar fundos para as atividades da Igreja local e, no ano seguinte, durante a quaresma, essa campanha recebeu o nome de “Campanha da Fraternidade”. Isto ocorreu na cidade de Natal. Diante da exitosa experiência, no ano seguinte, 1963, dezesseis dioceses do Nordeste também realizaram a Campanha da Fraternidade.
Diante disso, a CNBB, imbuída pelo espírito do Concílio Vaticano II[3], assumiu a Campanha da Fraternidade como projeto da Igreja no Brasil, à luz das Diretrizes Gerais de sua Ação Pastoral Evangelizadora. Lembrar o marco temporal em que nasce a Campanha da Fraternidade e seu contexto político, econômico e social é importante para falar desta Campanha. Cinquenta e seis anos depois, o País segue vivendo tempos difíceis, em que a fraternidade é sufocada pelos males do modelo econômico capitalista que prega o individualismo entre as pessoas, faz crescer a fome, o número de pessoas sem moradia digna, sem-terra, sem trabalho, vítimas das injustiças sociais. Um olhar sobre os temas da Campanha da Fraternidade ao longo destes cinquenta e seis anos leva a perceber a diversidades de gritos que se fizeram ecoar e que seguem ecoando em nosso chão, como demonstrado a seguir.
      
2.             Temas da Campanha da Fraternidade na linha do tempo

Como informado acima, a Campanha da Fraternidade foi assumida como projeto da CNBB no território nacional em 1964 e, naquele ano, teve como tema “Igreja em Renovação”. Como lema, “lembre-se: você também é Igreja”.  Essa campanha tinha como objetivo demonstrar que todas as pessoas podem ser Igreja. Para além da igreja física, do clero e dos/as religiosos/as consagrados/as, existe a Igreja Povo e esta igreja também deve se comprometer com os objetivos do Evangelho no amor ao próximo e com a causa da justiça, motivo pelo qual Jesus foi preso e condenado à morte. Importante lembrar que era um tempo de efervescência das comunidades eclesiais de base (CEBs), inspiradas na Teologia da Libertação e impulsionadas pelo concílio Vaticano II.
Em 1965 a Campanha da Fraternidade teve como tema “Paróquia em Renovação” e lema “Faça da sua paróquia uma comunidade de fé”. É na paróquia que a vida acontece, onde as pessoas se encontram com mais facilidade e se constrói a Igreja Povo. Em 1966 o tema da Campanha foi “Fraternidade” e o lema “Somos responsáveis uns pelos outros”. Um convite ao cuidado e à responsabilidade uns para com os outros, sobretudo para com as pessoas empobrecidas e com a construção da comunidade de fé e de compromisso com a justiça.
A “corresponsabilidade” foi tema da Campanha de 1967 e o chamado “Somos todos irmãos, somos todos iguais” foi seu lema. No ano seguinte (1968) o tema foi “Doação” e o lema “Crer com as mãos”, um forte chamado ao compromisso com a causa do Evangelho e com a justiça.  Em 1969, com o tema “Descoberta” e o lema “Para o outro, o próximo é você”, o convite se dava para o compromisso com a promoção humana e o amor ao próximo.
A década de 1970, trouxe temas como participação, reconciliação, promoção humana, serviço e vocação, a libertação por meio do amor, reconstrução, repartir o pão, comunidade, família, mundo do trabalho e migrações, perpassaram os temas da campanha, como demonstrado a seguir:
·           1970 Tema: Participar. Lema: ser cristão é participar;
·           1971 Tema: Reconciliação. Lema: Reconciliar
·           1972 Tema: Serviço e Vocação. Lema: Descubra a felicidade de servir;
·           1973 Tema: Fraternidade e libertação. Lema: O egoísmo escraviza, o amor liberta;
·           1974 Tema: Reconstruir a casa Lema: Onde está teu irmão?
·           1975 Tema: Fraternidade é repartir. Lema: Repartir o Pão;
·           1976 Tema: Fraternidade e Comunidade. Lema: Caminhar juntos;
·            1977 Tema: Fraternidade na Família. Lema: Comece em sua casa;
·           1978 Tema: Fraternidade no mundo do trabalho. Lema: Trabalho e Justiça para
 Todos;
·           1979 Tema: Por um mundo mais humano. Lema: Preserve o que é de todos.
Na década de 1980, os temas giraram em torno do mundo das migrações, saúde,
educação, violência, vida para todos, a fome, luta pela terra, o menor, povo negro e 
comunicação, como pode ser visto adiante:
·           1980 Tema: Fraternidade no mundo das Migrações, Exigência da Eucaristia. Lema:
 Para onde vais?
·           1981 Tema: Saúde e Fraternidade. Lema: Saúde para todos;
·           1982 Tema: Educação e Fraternidade. Lema: A verdade vos libertará;
·           1983 Tema: Fraternidade e Violência. Lema: Fraternidade, Sim! Violência, Não!
·           1984 Tema: Fraternidade e Vida. Lema: Para que todos tenham vida;
·           1985 Tema: Fraternidade e Fome. Lema: Pão para quem tem fome;
·           1986 Tema: Fraternidade e Terra;
·           1987 Tema: Fraternidade e o Menor. Lema: Quem acolhe o menor, a mim acolhe;
·           1988 Tema: Fraternidade e o Negro. Lema: Ouvi o clamor deste povo;
·           1989 Tema: Fraternidade e a Comunicação. Lema: Comunicação para a verdade e a
 paz.
Na década de 1990 foram temáticas como a mulher, o mundo do trabalho, juventude, 
moradia, família, política, os encarcerados, educação e os desempregados. Vejamos:
·           1990 Tema: Fraternidade e a Mulher. Lema: Mulher e Homem: Imagem de Deus;
·           1991 Tema: A Fraternidade e o Mundo do Trabalho. Lema: Solidários na dignidade 
do trabalho;
·           1992 Tema: Campanha da Fraternidade. Lema: Juventude Caminho Aberto;
·           1993 Tema: Campanha da Fraternidade. Lema: Onde Moras?
·           1994 Tema: Campanha da Fraternidade. Lema: A Família, como vai?
·           1995 Tema: Campanha da Fraternidade. Lema: Eras Tu, Senhor?
·           1996 Tema: Fraternidade e Política. Lema: Justiça e Paz se abraçarão;
·           1997 Tema: A Fraternidade e os Encarcerados. Lema: Cristo liberta de todas as 
prisões;
·           1998 Tema: Fraternidade e Educação. Lema: A Serviço da Vida e da Esperança;
·           1999 Tema: A Fraternidade e os Desempregados. Lema: Sem trabalho… Por quê?
Com a virada do milênio, a dignidade humana aparece como tema, seguida da temática das drogas, povos indígenas, pessoas idosas, a questão da água, a promoção da paz, pessoas com deficiência, a Amazônia, defesa da vida, segurança pública, economia, a vida no planeta, saúde, juventude, tráfico humano, igreja e sociedade, cuidado com a casa comum, biomas brasileiros, superação da violência e políticas públicas, como demonstrado a seguir:
·           2000 Tema: Novo Milênio sem Exclusões. Lema: Dignidade Humana e Paz;
·           2001 Tema: Campanha da Fraternidade. Lema: Vida, Sim! Drogas, Não!
·           2002 Tema: Fraternidade e povos indígenas. Lema: Por uma terra sem males;
·           2003 Tema: Fraternidade e pessoas idosas. Lema: Vida, dignidade e esperança;
·           2004 Tema: Fraternidade e água.  Lema: Água, fonte de vida;
·           2005 – Ecumênica Tema: Campanha da Fraternidade Ecumênica. Lema: Felizes os
 que promovem a paz;
·           2006 Tema: Fraternidade e Pessoas com Deficiências. Lema: Levanta-te, vem para o
 meio!
·           2007 Tema: Fraternidade e Amazônia Lema: Vida e missão neste chão;
·           2008 Tema: Fraternidade e Defesa da Vida Humana. Lema: Escolhe, pois, a vida;
·           2009 Tema: Fraternidade e Segurança Pública. Lema: A paz é fruto da justiça;
·           2010 Tema: Economia e Vida. Lema: Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro;
·           2011 Tema: Fraternidade e a Vida no Planeta. Lema: A criação geme em dores de
 parto;
·           2012 Tema: Fraternidade e saúde pública Lema: Que a saúde se difunda sobre a
 terra;
·           2013 Tema: Fraternidade e Juventude. Lema: Eis-me aqui, envia-me!;
·            2014 Tema: Fraternidade e Tráfico Humano. Lema: É para a liberdade que Cristo
 nos libertou;
·           2015 Tema: Fraternidade: Igreja e sociedade. Lema: Eu vim para servir;
·           2016 Tema: Casa comum, nossa responsabilidade. Lema: Quero ver o direito brotar 
como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca;
·           2017 Tema: Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida. Lema: Cultivar e
 guardar a criação;
·           2018 Tema: Fraternidade e superação da violência. Lema: Vós sois todos irmãos;
·           2019 Tema: Fraternidade e Políticas Públicas. Lema: Serás libertado pelo Direito e
 pela Justiça
Chama atenção para o fato de que ao longo destes mais de cinquenta anos de Campanha da Fraternidade todas as temáticas parecem igualmente presentes e urgentes na sociedade brasileira atual. Os temas se complementam e a dignidade humana e planetária está como pano de fundo em todos eles.
O tema da mineração, embora presente desde a invasão europeia no território brasileiro em 1500, ainda não apareceu diretamente nas campanhas da fraternidade, embora a mineração esteja de algum modo presente nas temáticas que pediram atenção para o cuidado com a natureza, cuidado com as águas e com a casa comum. Importante considerar que os primeiros atingidos pela exploração minerária no Brasil foram os povos indígenas e o povo negro.
Hoje, o país vive o drama das barragens que se rompem matando centenas de pessoas, como a Barragem de Fundão em Mariana e a do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Ademais, centenas de pessoas vivem em municípios e regiões ameaçados pela possibilidade de rompimentos a qualquer momento. Essas pessoas estão à mercê do que as próprias empresas, autoras destes crimes lhes oferecem. O cuidado, por meio de uma assessoria técnica e acompanhamento humanizado tem sido garantido apenas depois de muita luta e, para alguns casos, só depois que o crime acontece.
O trabalho preventivo nunca foi garantido. Faz-se necessário pensar uma grande campanha e reforçar a luta em torno desta temática e das pessoas atingidas pela mineração.

3.             O tema da campanha da Fraternidade em 2020

O tema da Campanha da Fraternidade neste ano de 2020, embora perpasse todos os demais dos anos anteriores, neste tempo em que vive o Brasil, tem um significado especial. “Fraternidade e vida: dom e compromisso,” com o lema: “viu, sentiu compaixão e cuidou dele” torna-se um grito forte para todas as pessoas que firmam sua fé no seguimento de Jesus de Nazaré.
Vivemos tempos em que a lógica é a do avesso ao amor ao próximo. Tempos em que se vê as realidades de dores e passa-se por diante para não se aproximar e muito menos cuidar. Todos os dias se atesta no Brasil os discursos de ódio e as ações de violências e de retiradas de direitos dos grupos e coletivos historicamente injustiçados, como os povos indígenas, sem-teto, sem-terra, pessoas em situação de rua, catadores de materiais recicláveis, pequenos trabalhadores rurais, ribeirinhos, homossexuais e um grande número de pessoas atingidas pela mineração. Mas, não apenas as pessoas. Rios, água, terra e a biodiversidade são assassinados.
A gestão política e econômica nesta sociedade capitalista não tem nada de “samaritana”. Os esforços tem sido colocados para aumentar as dores de quem se encontra caído à beira do caminho. Mas, o convite da Campanha da Fraternidade, urgente, em alto e bom som, é para “ver, descer e cuidar”. Isto precisa ser feito na sua radicalidade, como o fez Jesus de Nazaré. Ele, não apenas narrou a parábola do Samaritano. Esta parábola era o seu projeto de vida. Contudo, em tempos de muitos barulhos, de fake news, de mídias digitais, de muito brilho, de correrias, exercitar o ver, o sentir compaixão e o cuidar, é um exercício necessário e imprescindível para quem é cristão e/ou para quem é humano.
A inspiração do lema da campanha da fraternidade, com fundamento no texto de Lucas 10, 25-37, pede três atitudes fundamentais: ver, sentir compaixão e cuidar. Isto remete ao texto de Êxodo, na narrativa da libertação do povo da escravidão, quando afirma que Javé “viu a aflição do seu povo que se encontrava escravo no Egito, ouviu seus clamores e desceu para libertá-los” (Ex 3, 7-8).
Para viver o Evangelho é preciso ver, ouvir, sentir compaixão, descer e cuidar. Isso significa que não basta saber das injustiças. Não basta sentir a dor do próximo, pois, é preciso movimentar-se para a mudança desse quadro anti-cristão. Sem essas atitudes pode-se estar seguindo qualquer outra pessoa, menos Jesus de Nazaré. E para ver é preciso descer, pisar os pés nos lugares onde se encontram os “caídos”, os que estão à beira do caminho, as vítimas das injustiças sociais e da ausência de políticas públicas, os empobrecidos de nossa sociedade.
Mas, além de descer, de sentir compaixão, de ouvir, é preciso cuidar. Contudo, para cuidar, é preciso anunciar e denunciar, é preciso profetizar. É preciso correr riscos.
O cuidar pode incomodar, provocar ameaças e até morte. Mas é preciso entender as causas das feridas, o porquê das feridas. É preciso falar do lugar social de quem é ferido. No caso de Jesus, o cuidar do outro lhe levou à prisão e à morte. Fizeram dele um preso político e o condenaram.
Quando se trata de injustiça social, o cuidado deve buscar a reparação das injustiças. Isso passa por emancipação, luta coletiva e organização popular. É preciso dar o pão para matar a fome, mas é preciso garantir também teto, terra, saúde, educação, renda, cultura, dignidade humana, etc. É preciso empreender lutas por direitos.
No caso das pessoas e da natureza no Brasil, vítimas dos crimes socioambientais, como as pessoas atingidas por rompimento de Barragens, como em Mariana, Brumadinho e outros municípios ameaçados, o cuidar exige luta por reparação integral para as pessoas e para a natureza e toda biodiversidade, mas também exige  a responsabilização de quem cometeu os crimes, repensar o modelo econômico e o projeto de mineração que há séculos mata vidas e natureza no país. Em Minas Gerais e no Brasil, este é um clamor sem precedentes na história da humanidade, um grito que precisa ser ouvido e cuidado. É preciso caminhar junto com estas pessoas em suas lutas cotidianas contra as consequências continuados desses crimes.

4.             Rompimento da Barragem de Fundão em 2015

Repetir, repetir, até ficar diferente,” já profetizou o poeta brasileiro, Manoel de Barros. Passados quae cinco anos do crime/desastre socioambiental cometido pelas empresas mineradoras, Samarco (Vale-BHP Billiton) no município de Mariana em novembro de 2015, considerado à época, sem precedente no Brasil e no mundo, o que já não pode mais ser assim afirmado, pois, se repetiu em Brumadinho, em janeiro de 2019, o povo ainda espera pela reparação integral.
O novo crime/desastre (ou sua continuidade) que fez de Mariana um precedente, aconteceu em proporção ainda maior, pelo número de vítimas (mais de 250 pessoas, animais, rios e toda a vegetação do entorno). Por isso, é preciso repetir, fazer memória, e, sobretudo, lutar para que seja assegurado às famílias atingidas a reparação integral de seus direitos. Em tempos de Campanha da Fraternidade, é preciso trazer isto à baila.
Um ano após o rompimento da barragem de Fundão, a Cáritas Regional Minas Gerais, que atuava no território de Mariana com trabalho de assistência emergencial às pessoas atingidas, em parceria com a Cáritas Arquidiocesana de Mariana, assumiu a assessoria técnica dos/as atingidos/as. Isto se deu em decorrência da Ação Civil Pública nº 0400.16.003473-4, de autoria do Ministério Público Estadual local.
Desde então, a Assessoria Técnica executada pela Cáritas atua no território de Mariana, em diversas áreas, construindo com os/as atingidos/as, o trabalho de defesa de direitos, visando a reparação justa e integral, em cooperação com o Ministério Público, mas, também, buscando fortalecer o trabalho em rede e a parceria com as organizações e instituições de defesa dos/as atingidos. Para isso, atua com uma equipe multi/transdisciplinar.
O projeto de Promoção da Assessoria Técnica vem se consolidando no decorrer destes mais de três anos e se afirmando em sua identidade, com princípios e metodologia construídos e executado com e para os/as atingido/as, o que supõe o respeito ao seu tempo e a seus processos. A grande maioria dessas pessoas tiveram suas vidas modificadas e, para participar dos processos com a assessoria técnica, precisa redistribuir o tempo entre trabalho, família, atividades pessoais e uma série de reuniões convocadas, cotidianamente, também pelas empresas na pessoa da Fundação Renova.
Repetir, fazer memória, manter a luta na defesa da reparação justa e integral das pessoas atingidas e na defesa dos direitos da natureza, se faz urgente e necessário e é o que as famílias das comunidades do município de Mariana, atingidas, têm feito desde o dia 05 de novembro de 2015.
Passados mais de quatro anos do crime/desastre socioambiental e mais de 03 anos de experiência da Cáritas Brasileira no território, uma das conclusões a que se pode chegar é a de que “para um crime socioambiental continuado, a assessoria técnica também tem que ser continuada”, pois os efeitos do crime/desastre prolongam-se no tempo e nos espaços. E mais: esta assessoria tem que ser eleita pelos/as atingidos/as e tem que ser de sua estrita confiança.
O conceito de atingido, com o passar do tempo, tende a se alargar e os efeitos negativos em decorrência do crime/desastre, na vida e nos direitos das pessoas, tendem a aumentar, fazendo com que um número maior de pessoas passe a se reconhecer atingidas e pleitear os seus direitos.
Recentemente inúmeros estudos apontaram para um alto índice de contaminação do solo[4], da água, do ar e apontaram para o adoecimento de pessoas em decorrência disso. Pergunta-se se é possível delimitar no tempo o número de pessoas atingidas por uma tragédia desta envergadura. Um canal de confiança das pessoas deve permanecer aberto por décadas para que essas pessoas possam relatar os danos sofridos, direto e/ou indiretamente e ter seus direitos assegurados. Para um crime continuado, a garantia de direitos e a responsabilização também deve ser continuadas.

4.1.  A assessoria Técnica como direito fundamental e como “Novos Direitos”

O Direito à assessoria técnica para as pessoas atingidas por crime/desastres em decorrência da mineração  é um “Novo Direito” inserido na realidade fática do Sistema de Justiça brasileiro e, pode-se dizer que também é uma conquista vinda da da luta dos/as atingidos/as, luta esta, travada pelas pessoas atingidas pelo rompimento de barragens em Minas Gerais, iniciando pelo município de Mariana. Isto, tornou-se um precedente importante para o País e quiçá para o mundo.
Pelo conceito de Novos Direitos, não se faz necessário que estes direitos sejam regulamentados para serem concebidos enquanto tais. É primordial que seja efetivado e que seja resultado da organização e das lutas populares. Isso foi o que se deu com a conquista da assessoria técnica em Mariana, após o rompimento da Barragem de Fundão em 2015, pois a Assessoria Técnica é algo real e concreto que se efetiva na Comarca de Mariana a partir de muita luta e organização do povo atingido.
Reforçando a importância de entender a assessoria técnica dentro do conceito de Novos Direitos e como direito fundamental para reivindicar, nesse sentido, sua continuidade enquanto durar as demandas das pessoas atingidas, importante lembrar que:
A atual Constituição Brasileira de 1988 deixa espaço aberto para a possibilidade de novos direitos quando seu artigo 5º, parágrafo 2º, não exclui outros direitos "decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte." (...).  Entende-se que, para serem considerados "novos direitos", faz-se necessário que resultem de demandas populares e coletivas e não representem retrocessos (CARNEIRO, M. R. O 2019)[5]. 

No mesmo sentido afirma o autor Leonardo Fernandes dos Anjos, na obra denominada "Novos Direitos Urbanos", quando afirma:
Todos os movimentos de transformação do Direito decorrem de alterações gestadas no seio da sociedade. Dessa forma, o que pressupõe a existência dos direitos é o fato, que brota da (na) sociedade e condiciona a elaboração do direito posto.[...] Os novos direitos urbanos [e rurais] nascem, assim, de baixo para cima e não da iniciativa da autoridade do Estado (ius imperili). São “direitos achados na rua”, surgem a partir da atuação pública de cidadãos e de grupos de interesse formais e difusos que se posicionam quanto aos conflitos cotidianos no espaço público urbano (DOS ANJOS, 2017, p. 27)[6].

Os Novos Direitos, como o é o direito à assessoria técnica às pessoas atingidas pela mineração, já compõem o ordenamento jurídico brasileiro, visto que reconhecido e efetivado no curso da Ação Civil Pública nº 0400.16.003473-4, de autoria do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) em Mariana e nas demais medidas jurídicas praticadas nesta Comarca. Isto em Mariana é fato e está amparado pelo rol de direitos fundamentais da Constituição brasileira de 1988 que prever a possibilidade de outros direitos fundamentais, para além dos já especificados na Constituição.
Ocorre que a efetivação do direito à assessoria técnica para as pessoas atingidas pela mineração precisa ser continuada porque o crime/desastre socioambiental tem sido continuado. No caso de Mariana, passaram-se mais de quatro anos e as famílias ainda não foram reassentadas; as violações no âmbito da indenização/reparação integral são constantes; o não reconhecimento do Cadastro e de sua metodologia, incluindo a matriz de danos elaborada por especialistas de confiança dos atingidos são contestados pelas empresas. Ademais, como dito acima, estudos demonstram que os danos decorrentes do crime se expandem no espaço e no tempo, como, por exemplo, o índice de contaminação de pessoas, do solo, da água e do ecossistema. Isso tudo faz emergir, cotidianamente, novos danos para além dos já declarados no Cadastro e novas categorias de pessoas atingidas, o que requer, a continuidade do trabalho de assessoria à estas pessoas.
Por mais que se tente calcular o real cenário do número de famílias atingidas por este tipo de crime/desastre para participarem do processo de Cadastramento, a experiência da Cáritas, nos anos de 2018 e de 2019, mostra a impossível tarefa de fechar este número, pois se trata de uma realidade em aberto. A própria consciência de ser atingido/a, como dito antes, vai acontecendo com o passar do tempo, quando as pessoas vão sentindo os efeitos das violações.
Para um fato de tamanha proporção, sem precedentes na história do Brasil, o Direito brasileiro também não está preparado. Os institutos jurídicos precisam ser reinterpretados à luz do caso maior e de cada caso concreto. O instituto da prescrição, por exemplo, precisa ganhar outro corpo. Não pode ser justo uma pessoa se entender atingida cinco, dez anos depois, quando as consequências da lama e suas contaminações chegaram em sua vida e o Direito dizer para ela que o caso prescreveu. Qual seria o marco temporal para a prescrição de um crime desta natureza? Eis uma tarefa para o Direito.

4.2.  Do cadastro iniciado no ano de 2018 e continuado em 2019

A decisão para que a Cáritas Brasileira assessorasse no processo de Cadastro dos atingidos e atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão se deu em decorrência da constatação de que a proposta de metodologia apresentada pelas empresas Samarco/Renova e Synergia Consultoria Socioambiental não atendiam a realidade das pessoas atingidas em Mariana.
Diante disso, iniciou-se um longo processo de reformulação da proposta apresentada pelas empresas, o que foi feito pela Cáritas, por meio da assessoria técnica, atingidos/as e parceiros/as. Posteriormente, em audiência judicial realizada em outubro de 2017 foi definido que a Cáritas aplicaria o Cadastro, por ser uma entidade de confiança dos/as atingidos/as, o que resultaria no levantamento das perdas e danos sofridos em decorrência do rompimento da barragem.
Até a presente data a Cáritas atendeu mais de mil núcleos familiares que demandaram o cadastro, reconhecendo-se e se autodeclarando atingidos. Deste número, mais de 900 famílias já tiveram o processo finalizado e aguardam pela indenização ou estão em fase de negociação com as empresas. A metodologia do Cadastro realizado pela Cáritas, construída com os/as atingidos/as, supõe 05 etapas, quais sejam: 1) Aplicação do Formulário; 2) Cartografia Social; 3) Vistoria (para o que se aplica); 4) Tomada de termo individual; 5) Sistematização e elaboração de dossiês (um para cada núcleo familiar). Para além disso precede a essas etapas o trabalho da equipe de mobilização social que realiza os agendamentos para a realização de cada uma das etapas.
Para a realização dessas etapas é imprescindível a participação dos/as atingidos/as, pois, como dito, trata-se de uma metodologia participativa.  Isto implica tempo e disponibilidade das pessoas, bem como é preciso considerar as condições emocionais, de saúde, climáticas, etc., pois, etapas como a tomada de termo, cartografia social e vistoria, em que as pessoas relatam o que vivenciaram com o crime, muitas vezes, é preciso que seja agendado mais de uma vez. Isto é perfeitamente compreensível e precisa ser respeitado, pois não bastasse o sofrimento de tudo que vivenciou, as pessoas, muitas vezes, sentem-se novamente revivendo as dores e as violências do ocorrido. 
Ao finalizar o cadastro, as famílias demandam da equipe de assessoria jurídica da Cáritas o acompanhamento para as reuniões de negociação junto às empresas.  Atualmente, o projeto de promoção da Assessoria Técnica no município de Mariana atua com três grandes frentes, quais sejam: a assessoria técnica propriamente dita que faz o trabalho de acompanhamento das famílias nas temáticas do reassentamentos, atendimentos psicossociais, etc.; o cadastro das famílias, como explicado acima e a assessoria jurídica que acompanha as pessoas na fase de negociação extrajudicial, mas que também presta informação, esclarecimentos, etc.
Tudo isso significou e significa muita luta e conquista das famílias atingidas. Ter uma assessoria de confiança não é algo dado. É conquistado. A experiência em Mariana sinaliza para a necessidade disso. Uma assessoria independente, que passe pela escolha da comunidade e pessoas atingidas deve ser algo obrigatório para que seja licenciado e aprovado qualquer empreendimento que de certo modo vá atingir a população local e o meio ambiente, direto e/ou indiretamente. É preciso cuidar preventivamente. É preciso que isso seja garantido como direito fundamental. Nesse sentido, foi a decisão recente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), ao julgar o agravo de instrumento n.1.0400.15.003989-1/006 que afirmou: “a contratação de assessoria técnica específica para os atingidos do Município de Mariana é resultado de acordo celebrado (...) tendo em vista a situação de hipossuficiência técnica e econômica das vítimas”. Isso deve ser garantido, não apenas para o município de Mariana, mas para todas as famílias atingidas ao longo do Rio Doce, famílias de Brumadinho e todos os municípios e populações afetadas pela mineração que vivenciam, cotidianamente, o medo e as ameaças de rompimento, além dos danos cotidianos de que são vítimas.

Considerações finais

Nesse tempo em que a Igreja do Brasil convida para mais uma Campanha da Fraternidade, entendemos imprescindível trazer à baila esta reflexão, pois, pela luta das pessoas atingidas pela mineração e em decorrência dela,  a assessoria técnica se inclui no rol dos Novos Direitos no Brasil e precisa ser reconhecida como direito fundamental de todas as pessoas vítimas das consequências da mineração e de grandes empreendimentos, devendo ser assegurado de modo preventivo, inclusive, pois isso, como pede a Campanha da Fraternidade de 2020, com inspiração no Evangelho, é um modo de “ver, sentir compaixão e cuidar” das pessoas e da casa comum com toda sua biodiversidade. É uma premissa para o alcance da justiça social e da ecologia integral.
Mariana, 25 de fevereiro de 2020.


[1] Texto Base da Campanha da Fraternidade 2020.
[2] São Francisco de Assis (1182-1226). De Assis, Itália, fundou a Ordem dos Franciscanos.
[3] Concílio ecumênico convocado pelo Papa João XXIII no dia 25 de janeiro de 1959, 90 dias após o início de seu papado, objetivando uma avaliação da Igreja e de seus projetos no sentido de um maior compromisso com o Evangelho, opção preferencial pelos pobres e escuta dos clamores do povo.
[5] CARNEIRO, Maria do Rosário de Oliveira. A assessoria Jurídica no Marco do Pensamento Decolonial: direitos e saberes construídos nas resistências populares. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), 2019.
[6] DOS ANJOS, Leonardo Fernandes (Coord.). Novos direitos urbanos: necessidades humanas que nascem nas cidades. Lisboa: Thya, 2017.