quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Homenagem a João Zinclar, fotógrafo dos movimentos sociais que faleceu em 19 de janeiro de 2013, vítima de um acidente. Meses antes, ele esteve na Comunidade Dandara e fotografou, além das casas, o sonho e a vida das pessoas que moram lá. João Zinclar, presente!!!

























































Sobre a Comunidade Dandara, entrevista para o IHU Unisinos em março de 2013

Ocupação Dandara: "quem está usufruindo e dando função social é o legítimo dono". Entrevista especial com Maria do Rosário de Oliveira Carneiro.

"Não estamos em um Estado democrático de direito, mas em um Estado violentador dos direitos humanos, um Estado de injustiça estrutural", diz a advogada.

Confira a entrevista.

Por uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG, de 19-02-2013, está suspenso via liminar o mandado de reintegração de posse contra a ocupaçãoDandara, localizada na Pampulha, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Dessa forma, a comunidade pode continuar a construir suas casas e levar adiante o processo de organização de suas vidas, ainda que este resultado não seja o final. De acordo com a advogada popular Maria do Rosário de Oliveira Carneiro, responsável por defender Dandara junto à Justiça, num caso como o dessa ocupação "se está diante de um Estado, um município e uma construtora de um lado, e, do outro, centenas de famílias que não tinham um lugar para morar. E só depois da Comunidade Dandara é que a maioria dessas famílias pôde alimentar melhor seus filhos, pois deixaram de pagar o aluguel, um veneno que come no prato dos pobres todos os dias”. 

A advogada afirma na entrevista por e-mail à IHU On-Line que “não é comum encontrarmos jurisprudências no Brasil defendendo o direito constitucional, social e fundamental à moradia obrigando o Estado a cumprir com tal obrigação e muito menos reconhecendo e defendendo a função social da propriedade e a dignidade da pessoa humana”. Maria do Rosário ressalta que é preciso reconhecer que não basta somente o título de propriedade, mas “garantir a função social é um passo indispensável para se garantir justiça social no Brasil”. A seu ver, o Estado não agiu de forma diferente em relação às ocupações Dandara e Pinheirinho. O que muda é a maneira de organização das comunidades. “Resta para os pobres se organizarem, construírem lideranças fortes e capacitadas na defesa de direitos, somar as lutas e criar redes de apoio e solidariedade, pois se torna muito difícil lutar de maneira isolada”. E acrescenta: “Como conceber que poderes econômicos internacionais comprem as terras brasileiras enquanto que milhares de brasileiros não têm sequer um pedaço de chão para construir sua casa e viver com dignidade? A forma como estão distribuídas as terras no Brasil é o mais contundente estímulo à desobediência civil, às ações de ocupações, pois é a alternativa que resta na maioria dos casos: ocupar, resistir, construir e produzir alimentos, comunidades, vida com dignidade”.

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
é advogada popular, integrante da Rede Nacional de Advogados Populares RENAP. Juntamente com outros advogados populares e com a Defensoria Pública de Minas Gerais, atua no processo judicial da Ocupação-Comunidade Dandara, em Belo Horizonte-MG.
Confira a entrevista.
IHU On-Line  O que a decisão do Tribunal de Justiça de Mintas Gerais  TJMG, de 19-02-2013, prevê para a Ocupação-Comunidade Dandara? Qual é a situação jurídica da ocupação neste momento?

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
 A decisão do TJMG no dia 19-02-2013 manteve suspenso o mandado de reintegração de posse contra a comunidade Dandara. Trata-se de uma decisão do juiz da 6ª Vara da Fazenda Pública Estadual de Minas Gerais, Dr. Manoel dos Reis Moraes, que quando recebeu o processo de Reintegração de Posse da 20ª Vara Cível, com mandado de reintegração expedido, suspendeu tal mandado. Desta decisão, a construtora Modelo recorreu e este recurso é que foi julgado no dia 19-02 último. No julgamento, por unanimidade, foi mantida a posse para a comunidade Dandara. Isso garante à comunidade a continuidade das construções das casas, já bastante avançadas e a continuidade de seu processo de organização interna e externa.
A situação jurídica da comunidade neste momento é a seguinte: existem dois processos judiciais que envolvem acomunidade. A Ação de Reintegração de Posse, de iniciativa da construtora Modelo, em que esta figura como autora, tendo a comunidade Dandara como ré e a Ação Civil Pública – ACP movida pela Defensoria Pública de Minas Gerais, a especializada em direitos humanos, em que a comunidade Dandara é autora e figuram como réus o estado de Minas Gerais, o município de Belo Horizonte e a construtora Modelo.
Junção dos processos
No final de 2011, a Defensoria Pública e os advogados populares que atuam nos processos conseguiram que o Tribunal de Justiça de MG reconhecesse que havia conexão entre os dois processos, o que levou a Ação de Reintegração de Posse – ACP da 20ª Vara Cível, com mandado de reintegração expedido, para a 6ª Vara da Fazenda Pública Estadual, onde estava a ACP. Os motivos para que houvesse a junção dos processos são porque, primeiro, é uma possibilidade jurídica e, segundo, pela amplitude dos pedidos na ACP. O município e o estado, na ACP, podem ser condenados a garantir moradia digna para as centenas de famílias que vivem na comunidade. Na ACP não se discute apenas a posse como no processo cível, discute-se o direito fundamental/constitucional à moradia, discute-se direitos sociais, dignidade da pessoa humana, responsabilidade estatal de garantir tais direitos. Depois desse último julgamento aguardamos nova audiência para decidir o mérito nos dois processos.

IHU On-Line  Em termos jurídicos, quais são os próximos passos a serem tomados?

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
 O próximo passo é aguardar a agenda da audiência de instrução e julgamento que decidirá o mérito nos dois processos, quando teremos uma sentença. Importante frisar que a comunidade Dandara sempre esteve aberta ao diálogo, à possibilidade de conciliação e acordo. Contudo, muito consciente de seus direitos. Um eventual acordo tem que levar em conta a parte mais fraca que dialoga. Em um caso como este, estamos diante de um estado, um município e uma construtora de um lado, e, do outro, centenas de famílias que não tinham um lugar para morar. E só depois da comunidade Dandara é que a maioria dessas famílias pôde alimentar melhor seus filhos, pois deixaram de pagar o aluguel, um veneno que come no prato dos pobres todos os dias.
IHU On-Line  Quais são os maiores entraves já vencidos e o que ainda vem pela frente em termos de desafios?

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
 Os maiores entraves vencidos foram três: a) conseguir derrubar a decisão de reintegração de posse (mandado de despejo); b) conseguir que o Tribunal de Justiça reconhecesse a conexão entre os dois processos e retirar o da 20ª Vara Cível, cujo juiz entendia que as famílias deveriam ser despejadas; e c) construir quase mil casas ao mesmo tempo em que se construía uma comunidade formando lideranças. Nisso a contribuição das Brigadas Populares e da Rede de Apoio e Solidariedade têm sido imprescindível. Um fato que me emociona muito é o que aconteceu no início da comunidade quando a polícia militar de Minas Gerais ficava 24 horas vigiando a terra ("propriedade privada") para não deixar as famílias entrarem com material de construção. As pessoas foram muito resistentes e criativas. Teve mães que, para sair do barraco de lona, carregavam os tijolos no carrinho de bebê e assim conseguiam driblar a vigilância da polícia e entrar com o material de construção, dando início à confecção das casas de alvenaria.
Direito humano fundamental
Os desafios que vêm pela frente, mas que já estão presentes, são as instalações de água, luz, saneamento e demais serviços públicos na comunidade. Não é concebível a negativa do município de Belo Horizonte para instalar esses serviços com o argumento de que se trata de uma "área irregular". Trata-se de direito humano fundamental. Água e energia são direitos elementares. É um crime negar água a centenas de pessoas, incluindo idosos, crianças, deficientes etc. A Constituição não põe qualquer restrição. Não diz, por exemplo, ser direito desde que... Portanto, a regulamentação destes direitos por meio de leis, decretos e termos de ajustes de condutas, por parte do município, não pode limitá-los e, pior do que isso, negá-los. A comunidade vem travando esta luta. Esta negativa do poder público força o povo a fazer instalação clandestina dos serviços e os submete a uma série de riscos, como já ocorreu na comunidade com pessoas que tentavam instalar a energia e sofreram acidentes. Um trabalhador morreu eletrocutado, inclusive.
IHU On-Line  Há precedentes nesse tipo de ação em outras ocupações no Brasil?

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
 Os precedentes ainda são poucos. Neste mesmo dia em que ocorreu o julgamento no processo da comunidade Dandara o TJMG também manteve suspensa a reintegração de posse a favor de várias famílias de uma ocupação na cidade de Timóteo, no Vale do AçoMinas Gerais, também fruto da luta incansável das famílias e dos advogados populares que acompanham o caso. Recentemente, no estado doMaranhão, uma comunidade denominada Cipó Cortado, trabalhadores e trabalhadoras que há quase sete anos ocupam um latifúndio que não cumpria sua função social obtiveram uma decisão judicial favorável à manutenção da posse.
Note que, tanto no caso de Dandara como nos outros que citei, trata-se de decisões liminares, ou seja, ainda não é a decisão definitiva. Não é comum encontrarmos jurisprudências no Brasil defendendo o direito constitucional, social e fundamental a moradia; obrigando o Estado a cumprir com tal obrigação e muito menos reconhecendo e defendendo a função social da propriedade e a dignidade da pessoa humana. Injustamente, ainda se mantém nos tribunais a defesa da propriedade de alguns e, muitas vezes, de forma absoluta. Reconhecer que não basta o título de propriedade, mas que precisa garantir a função social, é um passo indispensável para se garantir justiça social no Brasil. Essa é uma grande luta da advocacia popular militante que, em quase todo o Brasil, juntamente com as Defensorias Públicas Estaduais, vem aguerridamente lutando para construir precedentes neste sentido. Cabe recordar que a noção de propriedade privada tem pouca história. O que é muito antigo é a noção de posse: quem está usufruindo e dando função social é o legítimo dono.
IHU On-Line  Como compreender que o Estado tenha agido de forma tão diferente em Pinheirinho e em Dandara? O que há de semelhanças e diferenças nessas duas ocupações?

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
 Eu não conhecia profundamente a Ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos-SP. Penso que lá os interesses econômicos se sobrepuseram aos interesses sociais de centenas de famílias que foram jogadas na rua. Naji Nahas, que se dizia dono da terra, é uma pessoa de grandes influências com o governo de São Paulo e com os podres poderes que determinaram o despejo. Quando os poderosos se juntam contra os pobres é preciso muita resistência, organização interna e externa. As conquistas da comunidade Dandara até o momento são frutos das lutas travadas por ela. Sempre vigilante. A forma como a comunidade está organizada transmite um recado à sociedade: temos consciência dos nossos direitos e não estamos a sós. Dandara conquistou uma grande rede de apoio em Belo Horizonte, Minas Gerais, no Brasil e no exterior. Não foi o Estado que agiu de forma diferente nos casos Pinheirinho e Dandara, mas as comunidades agiram de maneiras diferentes na forma de organização. O Estado, infelizmente, é o mesmo, sempre violento. Cada vez mais está atrelado às grandes empresas, ao latifúndio e na defesa dos interesses privados. Por isso resta para os pobres se organizarem, construírem lideranças fortes e capacitadas na defesa de direitos, somar as lutas e criar redes de apoio e solidariedade, pois se torna muito difícil lutar de maneira isolada.
IHU On-Line  Qual é a fundamentação jurídica para a defesa dessa ocupação de terras?
Maria do Rosário de Oliveira Carneiro  A fundamentação jurídica é a defesa do direito à moradia, um direito fundamental garantido na Constituição da República. O município, o estado e o governo federal são obrigados a garantir moradia digna a todas as pessoas. Em Belo Horizonte, por exemplo, até o final de 2012 o prefeito Márcio Lacerda não havia construído nenhuma casa para famílias de zero a três salários mínimos pelo programa Minha Casa Minha Vida. Estas famílias, com uma renda mínima, escravizadas pelo aluguel, não tiveram outra alternativa, senão ocupar. Como afirma o povo das ocupações em uma palavra de luta: “Enquanto morar for privilégio, ocupar é um direito”, e um dever, acrescento eu. Não se trata de ocupar áreas já utilizadas. Trata-se de ocupar verdadeiros latifúndios, abandonados, sem cumprir o requisito constitucional da função social e, em muitos casos, com dívidas imensas de impostos, terras griladas e/ou devolutas. Também o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, basilar da Constituição brasileira, além de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como aDeclaração Universal dos Direitos Humanos, alicerçam tais ações.
IHU On-Line  Como podemos compreender que o Estado brasileiro normalmente defenda os grandes proprietários de terra em vez de assegurar terra aos pequenos?

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
 Isso passa pelo financiamento das campanhas. As grandes empresas vinculadas aos grandes proprietários e ao latifúndio cada vez mais financiam as campanhas e os governos ficam submissos a elas. Claro que diante dos acordos eleitorais as prioridades não serão os pequenos, os pobres. Vemos no Brasil, por exemplo, nos últimos anos, o projeto de reforma agrária silenciado e retrocedendo. Vemos movimentos sociais populares, como o MST e outros de luta pela terra, resistindo e insistindo, mas quase não há resposta por parte do governo. Enfim, não estamos em um Estado democrático de direito, mas em um Estado violentador dos direitos humanos, um Estado de injustiça estrutural. Ficar indignado e se rebelar diante de tantas injustiças são imperativos éticos. Feliz quem não se omite e nem se faz cúmplice da opressão do capital. Feliz quem se compromete com a causa dos oprimidos e quer a libertação de todos, o que passa pela construção de um outro Estado e de uma outra sociedade nos quais caibam todos e tudo.
IHU On-Line  Como podemos compreender que a conjuntura do agronegócio (com um viés notadamente marcado por monoculturas), a construção de grandes condomínios e mesmo obras do PAC mobilizam os esforços da justiça sem que sejam tomadas em consideração as demandas das camadas populares?

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
 Não podemos perder de vista que estamos em uma sociedade capitalista, cujos interesses fluem na direção do lucro, do mercado e da defesa da propriedade privada. O capitalismo e os capitalistas são sempre sádicos. A eles interessam reduzir tudo a mercadoria e não podemos nos enganar: para a manutenção desta sociedade capitalista, os poderes atuam de forma atrelada. A Comissão Pastoral da Terra – CPTaponta para o fato de que de 1985 a 2009, em média, anualmente, 2.709 famílias foram expulsas de suas terras e que, em média, 63 pessoas foram assassinadas em luta por terras anualmente no Brasil. Uma média de 13.815 famílias foram despejadas pelo Judiciário, com medidas do poder Executivo, cumpridas por policiais. Pessoas presas por lutar por terras (média anual): 422 pessoas. Foi constatado, à época, 92.290 famílias na luta pela terra e uma média anual de 6.520 ocorrências de situações análoga ao trabalho escravo. Segundo o livro Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2004), lançado anualmente há 28 anos, “a violência no campo tem várias faces, mas um só coração: a estrutura fundiária concentrada e o excludente modelo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro”. Essa publicação atesta a perpetuação e o agravamento dos conflitos no campo causados pelo agronegócio, que agride o meio ambiente e fere os direitos dos camponeses. Para Maria Luisa Mendonça, coordenadora e editora nos últimos dez anos do relatório anual sobre os direitos humanos no Brasil, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, “quando analisamos os direitos humanos no Brasil, constatamos que a concentração fundiária está relacionada à maioria das violações, por representar a origem das desigualdades sociais e econômicas”.
A propriedade privada, a riqueza, bem como os recursos produtivos estão concentrados, efetivamente, causando a urbanização que tem caracterizado a história do Brasil nos últimos 100 anos. Lembra a autora que há dez anos aRede Social de Justiça e Direitos Humanos publica um relatório anual que analisa direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais no Brasil. Um balanço deste período mostra que o país segue sem enfrentar as principais causas das violações de direitos básicos, como a fome, o analfabetismo, a concentração fundiária, o enorme déficit de moradia, o caos na saúde pública e o descaso com a educação, apesar de ser o Brasil a 6ª maior economia do mundo. Os relatórios mostram que as violações aos direitos humanos são resultados de políticas econômicas neoliberais que geram maior desigualdade econômica e social. A concentração fundiária no Brasil está relacionada com a maioria das violações aos direitos humanos por representar a origem das desigualdades sociais e econômicas. O Censo do IBGE de 2006 revelou que as propriedades com menos de 10 hectares ocupam menos de 27% da área rural enquanto as propriedades com mais de mil hectares representam 43% do total.
O Estado como empresa
As prioridades de governo não são as demandas populares porque a lógica de governo é a lógica de um desenvolvimento econômico capitalista. O Estado equiparado a uma grande empresa. Por isso não se toca na questão da distribuição de renda, regulamentando, por exemplo, o preceito constitucional de criação do imposto sobre grandes fortunas. Fica-se na lógica da política de transferência de renda, com o Bolsa Família e outros programas, com a falsa aparência da inclusão pelo consumo, o que jamais poderá ocorrer. A inclusão tem que vir com a justa distribuição de rendas, com efetivação dos direitos sociais e fundamentais, com políticas que, de fato, garantam dignidade, mas não a dignidade sob a ótica governamental e dos empresários, dignidade sob a ótica do povo historicamente injustiçado. Esse povo tem o direito de dizer o que é melhor para ele, onde quer morar e trabalhar, enfim, decidir como e onde quer ser incluido.
IHU On-Line  Limitar a propriedade da terra é um elemento importante para promover a reforma agrária brasileira? Por quê? Com tantas terras improdutivas no Brasil, como podemos compreender que ainda existam agricultores que não têm onde plantar e viver?

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
 Limitar a propriedade da terra é sim um dos elementos importantes para promover a reforma agrária brasileira. O bom seria a extinção da propriedade privada. A terra deve ser justamente distribuída de forma equitativa. Trata-se de um bem natural. Nenhum ser humano a produziu utilizando seus próprios recursos, portanto, de onde vem o direito para que alguém dela se aproprie? Mas, enquanto a extinção esteja mais distante, faz-se urgente pensar a limitação. Aliás, é justamente por não haver um limite que existem os grandes latifúndios, em grande parte improdutivos e à mercê da especulação imobiliária. Um dado alarmante, por exemplo, é a crescente compra de terras brasileiras por empresas internacionais para exploração econômica das riquezas naturais brasileiras. Como conceber que poderes econômicos internacionais comprem as terras brasileiras enquanto que milhares de brasileiros não têm sequer um pedaço de chão para construir sua casa e viver com dignidade? A forma como estão distribuídas as terras no Brasil é o mais contundente estímulo à desobediência civil, às ações de ocupações, pois é a alternativa que resta na maioria dos casos: ocupar, resistir, construir e produzir alimentos, comunidades, vida com dignidade.
IHU On-Line  Qual é a relação que existe entre a criminalização dos movimentos sociais, como o MST, e a demora na realização da reforma agrária?

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
 A criminalização se dá justamente porque os movimentos sociais, como o MST, fazem frente contrária a essa lógica de governo do desenvolvimento econômico que favorece apenas o mercado. A criminalização, sobretudo por parte da mídia, é uma tentativa de desmobilizar as organizações populares e colocar a sociedade contra esses movimentos sociais. Com isso se prolonga ou se tenta retirar da pauta do governo o projeto de reforma agrária. Claro, com os movimentos enfraquecidos, sem apoio da sociedade, fica mais fácil desistir da reforma agrária. Mas os movimentos sociais, ao contrário do que algumas vezes parece, estão muito vivos e presentes. No Brasil, em matéria de direitos humanos as conquistas históricas são frutos dessas lutas, apesar de toda criminalização. Cresce, por exemplo, a força do movimento de comunicação alternativa que, com as redes “sociais”, tem construído debates e feito revelações que a mídia convencional esconde. A história mostra que quanto mais repressão, maior a resistência. É a máxima do grande companheiro, mártir de El SalvadorDom Oscar Romero: “se me matam, vou ressuscitar na luta do meu povo”. Não tenho dúvida. Muitas vozes que foram caladas e criminalizadas estão plenamente vivas e presentes na resistência do povo injustiçado.
(Por Márcia Junges)

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

As vítimas da invisibilidade. Entrevista especial com Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro

As vítimas da invisibilidade. Entrevista especial com Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro

“O direito fundamental do acesso à justiça está distante das pessoas vulneráveis, da classe empobrecida e injustiçada”, dizem as advogadas do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável – CNDDH. 

Confira a entrevista. 


Ao contrário do que se possa imaginar, a população de rua “não é composta por mendigos e pedintes”, esclarecem Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro à IHU On-Line. Os moradores de rua são “trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, trabalhadores sazonais (migrantes e trecheiros), famílias que perderam a moradia, vítimas de vulnerabilidade social, pessoas com sofrimento mental, drogadição e uso abusivo de álcool e outras drogas”, informam em entrevista concedida por e-mail.

Na avaliação delas, a realidade das pessoas em situação de rua é resultado de “fenômenos complexos com origem, sobretudo, no processo histórico de exclusão social, deslanchando com o desenvolvimento do capitalismo e que se perpetua com os modelos de desenvolvimento econômico atuais”. 

Apesar de a Política Nacional da População em Situação de Rua ter sido instituída pelo governo federal há quatro anos, as advogadas informam que “boa parte dos municípios brasileiros ainda não a implementou”. E concluem: “Os governos precisam compreender que a saída das ruas começa com o estabelecimento de políticas estruturantes que garantam a saída das ruas de maneira digna, com a garantida de acesso a direitos fundamentais como moradia, saúde, educação, cultura, entre outros”.

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro são advogadas do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável – CNDDH, um projeto da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República em parceria com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, com o Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Além disso, tem parceria com o Movimentos Nacional de População em Situação de Rua – MNPR e com o Movimento Nacional de Catadores de Material Reciclável – MNCR.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – É possível traçar um perfil de quem são os moradores de rua?

Fonte: R7Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
– A população em situação de rua (ou simplesmente PSR) pertence a um grupo extremamente heterogêneo. Entretanto, tem como característica a pobreza extrema e o “despertencimento” à sociedade formal. Situados à margem da sociedade, são vítimas de descaso, discriminação, preconceito e desprezo que resultam, em muitos casos, em ações violentas de agressão e mesmo homicídios. Além disso, o desconhecimento sobre a situação das pessoas em situação de rua contribui para a formação de um conceito equivocado que criminaliza pessoas em razão de sua condição social. Verificamos a invisibilidade social e, na perspectiva do direito, a ausência de políticas públicas estruturantes e emancipatórias.

IHU On-Line – Quando se trata de populações em situação de rua no Brasil, que
diagnóstico pode ser feito? É possível estimar quantas pessoas vivem na
rua?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
– A pesquisa publicada em abril de 2008 peloMinistério do Desenvolvimento e Combate à Fome – MDS aponta um perfil. A maioria das pessoas em situação de rua é do sexo masculino (82%) e jovem, entre 25 e 44 anos, de cor declarada parda ou preta, sendo composta por trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, trabalhadores sazonais (migrantes e trecheiros), famílias que perderam a moradia, vítimas de vulnerabilidade social, pessoas com sofrimento mental, drogadição e uso abusivo de álcool e outras drogas. O desemprego aparece em 30% das citações, e os conflitos familiares, com 29%, compõem o quadro de razões que os levam a viver nas ruas. Dos entrevistados, 88,5% não têm acesso a programas governamentais, como aposentadoria, Bolsa FamíliaBenefício de Prestação Continuada, cesta básica, vale transporte ou outro. Sobre a questão do trabalho, a partir da pesquisa podemos concluir que a maior parte das pessoas em situação de rua possui uma ocupação ou um trabalho, 72% afirmam que exercem alguma atividade remunerada, a maior parcela (28%) é catadora de materiais recicláveis. A atuação como flanelinha (guardadores de carro), carregador, na construção civil e no setor de limpeza são outros tipos de trabalho mais citados. Os dados revelam que a população de rua não é composta por mendigos e pedintes. 

Com relação às pessoas em situação de rua no Brasil, é difícil apontar um número. Vítimas da invisibilidade, eles ainda não foram contados em nenhum Censo. Segundo a pesquisa do MDS feita em 71 municípios com mais de 300 mil habitantes, destacamos que não foram contabilizadas as capitais de São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Porto alegre, foi identificada a presença de 31.922 pessoas adultas em situação de rua, mas o Movimento Nacional da PSRestima um número em torno de 150 mil pessoas em situação de rua no Brasil. É preciso destacar a Portaria n. 824 de 2012, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que institui o Grupo de Trabalho para Pesquisa/Censo – IBGE, com fins de incluir a PSR na contagem do próximo Censo, o que pode constituir um avanço ao acesso de direitos.

IHU On-Line – A situação dos moradores de rua é um reflexo de quais circunstâncias?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
– Compreendemos que a realidade das pessoas em situação de rua é resultado de fenômenos complexos com origem, sobretudo no processo histórico de exclusão social, deslanchando com o desenvolvimento do capitalismo e que se perpetua com os modelos atuais de desenvolvimento econômico. Na contemporaneidade, a utilização dos logradouros e espaços públicos como moradia se desencadeia em decorrência de vários fatores: ausência de vínculos familiares, desemprego, violência, perda da autoestima, alcoolismo, uso de drogas, doenças mentais e falta de acesso à moradia convencional e regular, entre outros.

IHU On-Line – Em 2012, os dados apontavam Belo Horizonte como a capital líder em
assassinatos de moradores de rua. O que mudou neste último ano?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – De fato, o número de homicídios em Belo Horizonte é alarmante. De fevereiro de 2011 a março de 2013 já ocorreram 85 homicídios e 21 tentativas de homicídios na capital mineira. O CNDDH trabalha com um banco de dados próprio. Recebe denúncias de forma direta (as pessoas vêm ao CNDDH), mas também recebe denúncias de outras fontes como a mídia, movimentos populares e cidadãos/ãs sensíveis ao tema. Em Belo Horizonte outra fonte de recebimento de denúncias de homicídios é a Polícia Civil, departamento de homicídios. Talvez este seja o motivo pelo qual o número em Belo Horizonte se apresente de maneira mais acentuada. Também, como a sede do CNDDH está em Belo Horizonte chegam mais dados. Importante destacar que não podemos fazer comparações entre os estados pelos motivos acima citados, mas exclamamos nosso profundo repúdio ao alto índice de violência contra a população em situação de rua em Belo Horizonte, assim como em todo o Brasil.

IHU On-Line – Com frequência são denunciados casos de violência contra moradores de
rua em todo o país. Como compreender essas agressões?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – Nos dados do CNDDH a violência física está em primeiro lugar (com os homicídios, as tentativas de homicídios e lesão corporal) e, em segundo lugar, vem a violência institucional, que corresponde à violência policial ou praticada por instituições de segurança, o abuso de autoridade, a demora excessiva ou desídia no atendimento, a ausência de acesso aos serviços públicos, prisão ilegal, homofobia institucional e omissão ou ineficácia das políticas públicas. A ausência de políticas que garantam direitos fundamentais sociais a essa população na maioria dos casos contribuem para o aumento da violência. Boa parte dos municípios brasileiros ainda não implementou a política para a População em Situação de Rua instituída pelo governo federal por meio do Decreto n. 7.053/09. Em alguns municípios, mesmo naqueles que instituíram a política, os serviços para a PSR são insuficientes ou ineficazes. Direitos como os de moradia, saúde, acesso à justiça, educação, apoio familiar, ainda lhes são extremamente negados e, em muitos casos, os equipamentos como albergues e repúblicas estão fora da tipificação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Vemos abrigos, albergues e repúblicas com superlotações e com metodologias que dificultam a socialização e a organização para a saída das ruas, o que precisa urgentemente ser repensado.

IHU On-Line – Quais são as outras políticas públicas existentes para a população em
situação de rua?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
– Como dito acima, existe a Política Nacional da População em Situação de Rua, instituída pelo governo federal por meio do Decreto no. 7.053/09. Partindo da Política Nacional, os estados e municípios devem instituir a política local, o que ainda anda de maneira muito vagarosa. A Política Nacional, em seu Art. 7º, dentre outros objetivos, garante os seguintes:

•    Assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda.
•    Implantar centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação de rua.
•    Criar meios de articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde para qualificar a oferta de serviços.
•    Implementar ações de segurança alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso permanente à alimentação pela população em situação de rua, alimentação com qualidade.

CNDDH é um dos objetivos da Política Nacional da PSR: “implantar centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação de rua”. Com a especificidade dessa população, sobretudo a ausência de endereço residencial, muitas vezes se torna difícil o acesso à justiça. O CNDDH, com o objetivo de combater a violência contra esta população e garantir-lhe o acesso à justiça, trabalha articulado com as Defensorias Públicas, o Ministério Público e demais espaços de defesas de direitos e redes de proteção social, diminuindo as distâncias e facilitando a participação nos processos judiciais e administrativos em que a PSR figura como parte.

No que se refere à segurança alimentar, outro objetivo da Política Nacional e um direito assegurado pela Lei Federal n. 11.346/2006, convém salientar que em Belo Horizonte o Movimento da PSR conquistou da prefeitura municipal as refeições gratuitas nos restaurantes populares de segunda a sexta feira. Contudo, embora haja previsão na legislação municipal, as refeições não são oferecidas nos finais de semana e feriados, o que tem sido uma das pautas de reivindicações da PSR em Belo Horizonte. Não temos notícias de que outros municípios brasileiros assegurem a alimentação à PSR na modalidade de Belo Horizonte. Entendemos ser esta uma política elementar e fundamental, devendo ser instituída por todos os municípios brasileiros nos termos da legislação federal.

Pode-se afirmar que a violência física, como os homicídios e as tentativas, em tese, é a culminância dos diversos tipos de violências praticadas contra esta população, sobretudo a violência institucional como a omissão e ineficácia de políticas públicas que asseguram direitos fundamentais.

IHU On-Line – Muitas denúncias fazem referência a políticas de caráter higienistas, com retirada forçada de pessoas e pertences pessoais. Vocês têm recebido este tipo de denúncia no CNDDH? 

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – Sim. São muitas as denúncias deste tipo. Sobretudo com a aproximação da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, esta última que acontecerá em 2014. São muitas as ações dos poderes executivos municipais, com apoio de policiais militares, em vários municípios brasileiros, de retirada forçada das pessoas das ruas, sobretudo dos centros das cidades. Em muitos casos, nestas retiradas levam os pertences pessoais, como documentos, remédios, roupas, cobertores etc. O que em certos casos pode até se caracterizar como um crime de roubo, considerando a violência e a grave ameaça. Em Belo Horizonte, existe uma decisão judicial em uma Ação Popular, do Tribunal de Justiça de Minas Gerias, impedindo este tipo de ação. Apesar disto, o CNDDH continua recebendo denúncias oferecidas por pessoas que tiveram seus pertences recolhidos pela prefeitura municipal, com apoio de policiais militares.

IHU On-Line – Como vocês veem as atuais medidas de intervenção dos governos para a retirada das pessoas das ruas e a política sobre drogas?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – Usuários de drogas são objetos de práticas higienistas e de segregação em vários estados. Essas ações atingem sobretudo pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade, como a população em situação de rua. A retirada forçada das ruas e a aplicação de medidas de tratamento e internação involuntários, sem o consentimento do usuário, sem metodologia clara e que contrariam avanços estabelecidos desde a luta antimanicomial, da reforma psiquiátrica e do Sistema Único de Saúde – SUS são um atentado aos direitos dos cidadãos. A questão da droga e da drogadição é complexa e exige do poder público e da sociedade grandes esforços para a compreensão do tema e, principalmente, na garantia da dignidade humana e na defesa da cidadania. A proximidade de grandes eventos no país expõe a PSR a soluções simplistas dos governos que violam direitos, a liberdade e a cidadania das pessoas. O CNDDH tem tratado do tema com diversos parceiros como o Ministério Público, Defensorias Públicas, conselhos e entidades ligadas ao tema e concluímos que os governos precisam compreender que a saída das ruas começa com o estabelecimento de políticas estruturantes que garantam a saída das ruas de maneira digna, com a garantida de acesso a direitos fundamentais como moradia, saúde, educação, cultura, entre outros. Além disso, é preciso ressaltar que o uso das drogas para a PSR é apenas um sintoma de todo o estado de violações já sofrido por essa população.

IHU On-Line – Algo a acrescentar?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – Nestes dois anos de trabalho no CNDDH, como advogadas da População em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis, temos aprendido muito e enfrentado diversos desafios. Experimentamos como o direito fundamental do acesso à justiça está distante das pessoas vulneráveis, da classe empobrecida e injustiçada. Nossa luta é por justiça social com equidade. Para isso, faz-se urgente superar preconceitos e reinterpretar o direito à luz da dignidade da pessoa humana.

Política Nacional de Resíduos Sólidos. Logística reversa e Responsabilidade Compartilhada. Entrevista especial com Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva

IHU Unisinos
Política Nacional de Resíduos Sólidos. Logística reversa e Responsabilidade Compartilhada. Entrevista especial com Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva

“A PNRS estabelece a responsabilidade compartilhada, porém até o presente momento não há clareza e muito menos um consenso sobre a verdadeira responsabilidade de cada setor nesta cadeia”, dizem os engenheiros.

Confira a entrevista.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n. 12.305/2010 e seu Decreto Regulamentador) é um marco histórico nas políticas públicas de saneamento e de meio ambiente. É a ferramenta por meio da qual o tema fundamental e transversal dos resíduos finalmente está entrando na agenda da sociedade”. O comentário é dos engenheiros Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva, que veem na PNRS a possibilidade de o Brasil “construir um cenário alternativo ao descuido crônico com que sempre tratou seus resíduos expressos nos milhares de lixões e bota-foras existentes onde cerca de um milhão de catadores recuperam de forma indigna, insalubre ineficaz uma pequena fração de materiais, mas que é a maior parte do que o país consegue reciclar”.

Há três anos em vigor, a PNRS avançou pouco diante das suas propostas. “Bons exemplos de programas de coleta seletiva efetivos são raros não porque não seja possível realizá-los, mas sobretudo porque falta capacidade de gestão. Esse é o principal gargalo”, salientam os engenheiros em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo eles, “a maioria dos municípios não trabalha com o foco da inclusão dos catadores nos sistemas de coleta seletiva como prestadores de serviço e, sim, como grupos beneficiados pelo sistema”.

Dan Moche Schneider é engenheiro, mestre em Saúde Ambiental. Trabalha com gestão e manejo público de resíduos.

Diogo Tunes Alvares da Silva é engenheiro Ambiental graduado pela Faculdade de Engenharia e Arquitetura Fundação Mineira de Educação e Cultura – Fumec, especialista em Engenharia Sanitária pela Universidade de Minas Gerais – UFMG, com ampla experiência em implantação de programas municipais de coleta seletiva com inserção de catadores. É engenheiro membro do Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável – Insea.

Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os efeitos práticos da Política Nacional de Resíduos Sólidos –
PNRS até o momento?


Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva– A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n. 12.305/2010 e seu Decreto Regulamentador) é um marco histórico nas políticas públicas de saneamento e de meio ambiente. É a ferramenta por meio da qual o tema fundamental e transversal dos resíduos finalmente está entrando na agenda da sociedade.

Com a PNRS o país está começando a construir um cenário alternativo ao descuido crônico com que sempre tratou seus resíduos expressos nos milhares de lixões e bota-foras existentes onde cerca de um milhão de catadores recuperam de forma indigna, insalubre ineficaz uma pequena fração de materiais, mas que é a maior parte do que o país consegue reciclar.

O objetivo a ser alcançado pela PNRS é a proteção da saúde pública e da qualidade ambiental pelo fechamento dos lixões, retorno dos resíduos recicláveis ao sistema produtivo pela gestão compartilhada entre o poder público e o setor produtivo, feito com catadores de materiais recicláveis, e a disposição final de rejeitos.

A principal alternativa de gestão, a não geração de resíduos, é alcançada pela redução do consumo de recursos naturais a um nível, no mínimo, equivalente à capacidade de sustentação do planeta; uma mais justa distribuição e o estímulo a adoção de padrões sustentáveis de produção e consumo de bens e serviços.

Lições da PNRS
PNRS passou lição de casa para três grandes atores: o poder público (municipal, estadual e União), o cidadão e o setor produtivo.

a) O cidadão deve separar e apresentar para a coleta os resíduos recicláveis secos (embalagens, papel, plásticos, vidros, metais etc.) e úmidos (resíduos orgânicos como restos de comida e de jardins); esses representam 83% do total de resíduos.

b) O setor produtivo em gestão compartilhada com as administrações municipais e catadores de materiais recicláveis deve coletar, triar e proceder à logística reversa dos resíduos secos. O detalhamento dessa gestão é objeto dos chamados acordos setoriais.

c) O poder público deve elaborar o Plano de Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos – PGIRS onde devem estar detalhadas, entre outras ações, a implantação de aterros sanitários para rejeitos, a coleta seletiva dos secos – responsabilidade o setor produtivo –, a coleta seletiva dos resíduos úmidos e sua reciclagem e a destinação dos rejeitos a aterros sanitários.

Delineado o cenário, podemos responder que já foi dada a partida para a implementação da PNRS: foram elaboradosPGIRSs por um pequeno número de municípios e estados; a União elaborou de forma participativa o Plano Nacional de Resíduos Sólidos; o setor produtivo está elaborando e já começou a apresentar minutas de acordos setoriais.

IHU On-Line – No que se refere à implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, quais os principais impasses no sentido de solucionar a questão do lixo no país?

Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva – Diríamos o seguinte:

a) Os municípios trabalharem de forma associada em consórcios públicos intermunicipais de gestão e manejo de resíduos sólidos como estratégia para superarem suas fragilidades de gestão e assim implantarem aterros sanitários regionais, programas de coleta seletiva efetivos em gestão compartilhada com o setor produtivo onde sejam integrados um milhão de catadores.

b) O setor produtivo finalmente internalizar seus custos, usualmente pagos pela sociedade:

b.1) Constituir gerenciadora para coletar e proceder à logística reversa dos diversos materiais, a exemplo do que é feito na Europa – Sociedades Ponto Verde – e no Brasil, o INPEV (recuperação de embalagens de agrotóxicos) que em dez anos alcançou mais de 90% dessas embalagens.

b.2) Uma agenda de transição para um sistema produtivo que elimine a obsolescência programada e a oferta de produtos não recicláveis e não reparáveis.

c) A União direcionar a oferta de recursos públicos para programas de coleta seletiva, aterros sanitários, reciclagem de resíduos secos e úmidos e impedir sua oferta ao lobby de tecnologias concorrentes mais caras, ambientalmente mais arriscadas, que geram poucos postos de trabalho e que diminuem a geração de renda dos catadores, como a incineração de resíduos.

d) A sociedade se assumir como protagonista da implantação da PNRS; se não, outros o farão.

IHU On-Line – Como o trabalho dos catadores é abordado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos? Há uma integração dos catadores na gestão de resíduos sólidos, como sugere a política?

Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva – A PNRS é explícita e clara sobre o papel do catador na recuperação e reciclagem dos resíduos. Seu Art. 6o reconhece o resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania; o Art. 7o determina que um dos objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos é a integração dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos; o Art. 8oestabelece como um dos instrumentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis; o Art. 18 determina que serão priorizados no acesso aos recursos da União os municípios que implantarem a coleta seletiva com a participação de cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda.

O modelo de gestão de resíduos preconizado pelo Ministério do Meio Ambiente propõe a coleta seletiva dos resíduos secos e a triagem desses materiais contratadas prioritariamente a catadores organizados.

A integração dos catadores aos programas municipais de coleta seletiva é anterior à PNRS com exemplos memoráveis como a da experiência de Belo Horizonte no final dos anos 1980, quando se tornou referência nacional e, mais recentemente, a experiência de Londrina, no Paraná, que em cinco anos, e partindo de dezenas de grupos organizados de catadores que realizam a coleta porta a porta em toda a cidade e a triagem dos materiais, recuperou a quase totalidade dos resíduos secos da cidade. Mas bons exemplos de programas de coleta seletiva efetivos são raros não porque não seja possível realizá-los, mas sobretudo porque falta capacidade de gestão. Esse é o principal gargalo. O consórcio público é a forma de sua superação. A ver como se dará a gestão compartilhada entre o setor produtivo e as administrações municipais.

IHU On-Line – Um dos artigos da Política Nacional de Resíduos Sólidos menciona o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas e associações de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis. Como essa proposta tem sido realizada na prática?

Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva – Há incentivos, principalmente por parte do governo federal, tanto para a organização e inserção de catadores avulsos quanto para a estruturação e/ou reestruturação de empreendimentos e redes de catadores via editais e projetos com este pano de fundo. Porém, este item merece especial atenção, já que não há, até o momento, uma unidade na formatação e execução destas ações, ou seja, as diretrizes para a inclusão dos catadores, fortalecimento dos grupos organizados e outras questões não são tratadas de maneira uniforme. Não há uma regulamentação para este tema. Na verdade, a PNRS traça estas diretrizes, porém a execução das ações para que estas realmente sejam efetivas nem sempre são as desejáveis.

Obviamente pela dificuldade de se trabalhar em consonância aspectos sociais de grupos produtivos, oriundos de lixões e ruas, com aspectos formativos para o trabalho organizado, que possa atender aos anseios da sociedade e do poder público, poucas são as organizações/entidades que possuem expertise neste assunto e realmente logram êxito neste serviço e, como dito, não há uma entidade que “regule” e acompanhe a execução dos recursos provenientes dos diferentes projetos em vigência por todo o país. Desta feita, mesmo com disponibilidade de recursos há que se considerar o nível do apoio dado por quem os executa.

PNRS coloca os catadores como protagonistas no sistema de coleta buscando sua integração neste serviço. Porém, como a política os coloca como agentes prioritários ou por vezes como agentes preferenciais na coleta, a efetivação depende de arranjos institucionais no âmbito municipal, já que a PNRS não obriga e sim fornece as diretrizes e incentivos para tal.

Atores prioritários

Dessa forma, por parte dos poderes públicos municipais, as realidades são diversas e o apoio aos catadores se dá de diferentes formas. Percebe-se que a conquista ao direito da coleta acontece tanto pela sensibilidade dos gestores como pelo amadurecimento do grupo de catadores. Tal relação se mostra exitosa onde há esta conjunção de fatores.

A grande maioria dos municípios não trabalha com o foco da inclusão dos catadores nos sistemas de coleta seletiva como prestadores de serviço e, sim, como grupos beneficiados pelo sistema. O amadurecimento dos grupos de catadores deve ser trabalhado para que estes sejam realmente incluídos como atores prioritários, como também os municípios devem considerar o exposto na PNRS para a real inclusão dos catadores.

Porém, é inquestionável que os montantes aplicados para tal incentivo são consideravelmente menores em relação às linhas de crédito e investimento concedidas ao setor privado nas diferentes etapas que envolvem a gestão dos resíduos sólidos. Haja vista os valores envolvidos nos contratos entre Estado e municípios e empresas privadas para execução de determinados serviços: estes vêm se tornando cada vez mais expressivos com o fortalecimento do modelo de parceria público-privada na gestão de RSU.

IHU On-Line – Os senhores mencionam que as atuais parcerias público-privadas para o destino final dos resíduos sólidos têm ameaçado os catadores. Em que sentido isso acontece? Como estão os acordos referentes à logística reversa entre o poder público e o setor privado?

Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva – Uma PPP na área de resíduos sólidos é uma forma de o poder público captar recursos privados para viabilizar instalações de manejo e tratamento de resíduos. Em contrapartida, o dono dos recursos é remunerado pela concessão da operação e manutenção dessas mesmas instalações por um longo período.

As instalações de tratamento que estão sendo objeto de PPP conflitam com os principais objetivos da PNRS. O projeto de incineração de resíduos com geração de energia elétrica do município de São Bernardo do Campo, em São Paulo, por exemplo, prevê incinerar em torno de 80% dos resíduos recicláveis secos e úmidos; o projeto de incineração de Barueri, no mesmo estado, prevê a incineração da quase totalidade dos resíduos recicláveis de três municípios da região.

Incineração x reciclagem

A incineração de resíduos secos e resíduos úmidos é um obstáculo para a reutilização ou reciclagem desses resíduos. No resíduo brasileiro predomina a fração úmida, que tem elevada umidade e baixo poder calorífico. A fração seca é constituída predominantemente por papéis, papelões e plásticos que correspondem a 60% dos materiais recuperados no Brasil por programas de coleta seletiva – incluindo os que integram catadores.

A necessidade de potencial calorífero para a incineração e para a geração de energia elétrica, conferido essencialmente por papel, papelão e embalagens plásticas, torna a reciclagem um obstáculo natural ao modelo econômico do incinerador: quanto mais reciclados forem jornais, papéis e embalagens plásticas, menos sustentada será a queima por lixo, mais necessária será a adição de combustível e maior será o custo para o poder público. Quanto maior o volume de resíduo seco incinerado menor será o número de catadores que poderão ser integrados à coleta seletiva e à triagem dos resíduos.

No que tange os acordos setoriais e a responsabilidade compartilhada na gestão dos resíduos, observa-se que a integração entre os envolvidos não é a desejável. O setor privado como produtor, envasador e distribuidor de embalagens se mostra unido em sua proposta, porém tal coesão se mantém apenas dentro do setor. Não há uma cadeia lógica proposta que possa ser encarada como um modelo de integração entre o setor privado e o público, bem como com a sociedade civil e catadores para efetivação da Logística Reversa.

Responsabilidade compartilhada

PNRS estabelece a responsabilidade compartilhada, porém até o momento não há clareza e, muito menos, um consenso sobre a verdadeira responsabilidade de cada setor nesta cadeia. A verdade é que cada “elo” defende seus interesses em vez de integrar as soluções. Raros são os exemplos onde os diferentes atores realmente atuam em concordância com o conceito de Logística Reversa e Responsabilidade Compartilhada, o caso das embalagens de agrotóxicos é um deles.

Os catadores como agentes prioritários na coleta buscam o real reconhecimento por retornar à cadeia produtiva as embalagens do setor privado. Este reconhecimento deve se dar pelo pagamento pelo serviço, porém não há o mesmo entendimento por parte do setor privado. Dessa maneira, tudo indica que a modelagem de Logística Reversa, ou seja, o papel de cada ator neste sistema, deva ser imposto pelo governo federal.

IHU On-Line – Uma das propostas da PNRS é terminar com os lixões até 2014. Isso é possível? Como esse trabalho deve ser realizado?

Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva – Pelo andar da carruagem não é possível. É necessário que oMinistério Público e a sociedade comecem a cobrar aqueles prefeitos que ainda resistem a se capacitar e se organizar para cumprir com sua responsabilidade constitucional de titular desse serviço de saneamento. Os municípios devem se organizar em consórcios públicos para superar suas dificuldades de gestão. O fechamento do lixão, previsto no PGIRS, deve ser antecedido da implantação de aterros sanitários preferencialmente regionais e de programas de coleta seletiva que integrem os catadores que trabalham no lixão e nas ruas da cidade.

IHU On-Line – Quais os desafios da PNRS, especificamente no que se refere à inclusão dos catadores na gestão dos resíduos?

Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva – A inclusão de centenas de milhares de catadores de materiais recicláveis depende:

a) de a sociedade acreditar que é possível melhorar a renda e as condições de trabalho de centenas de milhares de catadores de materiais recicláveis e de que isso será bom para todos. Uma visão-sonho compartilhada;

b) da organização e capacitação dos catadores de materiais recicláveis;

c) da criação de consórcios intermunicipais de gestão de resíduos sólidos ou do fortalecimento dos órgãos gestores municipais de resíduos sólidos;

d) de como serão desenhados os acordos setoriais entre o setor produtivo e as administrações municipais e de como serão remunerados os serviços de coleta seletiva e triagem que poderão ser contratados aos catadores organizados;

e) da capacidade da sociedade em defender os objetivos, princípios e diretrizes da PNRS contra tecnologias concorrentes da reciclagem;

f) do financiamento e apoio da União a todos estes processos;

g) e de a sociedade e Ministério Público mostrarem aos administradores municipais que esse tema veio para ficar.

IHU On-Line – Desejam acrescentar algo?

Dan Moche Schneider e Diogo Tunes Alvares da Silva – Apenas lembrar a canção de Raul: “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas o sonho que se sonha junto é realidade”. É tempo de sonhar. É tempo de fazer. Os seminários de meio ambiente este ano serão voltados ao tema dos resíduos sólidos. É tempo de participar e defender a PNRS.

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/518595-politica-nacional-de-residuos-solidos-cada-elo-defende-seus-interesses-entrevista-especial-com-dan-moche-schneider-e-diogo-tunes-alvares-da-silva