domingo, 1 de setembro de 2013

Aliança de Deus com o povo da Ocupação Dandara

Maria do Rosário O. Carneiro[1] e Gilvander L. Moreira[2]


No terceiro dia, surgiu um arco-íris sobre a Ocupação Dandara.

Na noite de sábado, dia 13 de março de 2010, quando eu começava a dormir, acordei com o telefone tocando e do outro lado um clamor de desespero: era uma das coordenadoras da Ocupação Dandara (no Céu Azul, região da Nova Pampulha, em Belo Horizonte, MG) me chamando para ir até à Ocupação o mais rápido possível, pois havia acontecido um incêndio em um barraco e duas crianças haviam morrido.
Ao chegar ao local, encontrei-me com o Grupo de 18 coordenadores e coordenadoras prestando apoio às famílias, numa profunda atitude de solidariedade. Era grande a sintonia entre eles e elas, o cuidado de uns para com os outros, a luta por se manterem fortes, diante de tanta dor, a fim de poderem ser ajuda e apoio não só à família das duas crianças, mas a todo o povo da Ocupação que se encontrava em profundo estado de choque.
Ficamos por ali, como o grupo de mulheres ao pé da cruz de Jesus. Diz o evangelho: “A mãe de Jesus, a irmã da mãe dele, Maria de Cléofas, e Maria Madalena estavam junto à cruz.” (João 19,25). Quando foram retirados os corpos carbonizados de Estefânia Carolina e Beatriz Tamires - as duas crianças irmãs, de 6 e 8 anos, respectivamente, que haviam morrido - do meio das cinzas do barraco (de 2 X 3 metros) pelos homens da perícia e pelos bombeiros, levantamos nossos braços para o céu e com lágrimas, indignação, esperança e muita dor, clamamos, de mãos dadas, ao nosso Deus, através da oração do Pai Nosso: Que venha a nós o vosso Reino... O Deus a quem clamávamos era o Pai/Mãe nosso/a dos pobres e marginalizados, dos mártires e dos torturados, dos sem-teto e dos sem-terra, o Deus companheiro que acampa com os pobres (cf. Ap 21,3-4)[3] e visita carinhosamente todas as famílias em todos os barracos, conhece a dor, a esperança e a alegria do povo marginalizado (cf. Ex 3,7-9)[4].
Pedimos que viesse o Reino de Deus que tem nome de Justiça, de casa para morar, terra para plantar, saúde, educação, comida, água, lazer, liberdade e dignidade, para todos e não só para alguns. Um Reino que é de Deus, porque é do povo que está caminhando de cabeça erguida, na luta contra toda repressão, opressão, discriminação e tantas formas de exclusão.
Quando os corpos desfigurados seguiram com a polícia para o Instituto Médico Legal e a mamãe das crianças, Vera Lúcia, foi levada presa pelos policiais; permanecemos por ali acompanhando um silêncio profundo que ia se fazendo, naquela madrugada de domingo, na Ocupação Dandara. A indignação tomou conta de todos, porque nos lembrávamos da luta das famílias para construir as casas de alvenaria e sair dos barracos de lona-preta e todas as dificuldades impostas pela polícia, que, de forma ilegal e arbitrária, dificulta a construção das casas, ao proibir a entrada de materiais de construção sem considerar a legitimidade desta luta, pois a Construtora Modelo, que se apresentou como proprietária, há 40 anos, deixou o terreno abandonado, sem cumprir a função social e isto, liminarmente, foi reconhecido pela Corte Superior do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que deu, sem nenhuma restrição, o direito da posse ao povo de Dandara.
Quando “tudo silenciou”, retornei para minha casa, a fim de descansar um pouco e retornar no dia seguinte. No caminho, de volta para casa, interroguei-me profundamente sobre o sentido da luta. Apoiar, ajudar, fortalecer a esperança dos pobres na luta, para conquistar direitos humanos e sociais? Por que e para que tanta dor? Assim como o profeta Elias, fugindo da perseguição do Rei Acab, por estar na luta contra a idolatria (I Reis 19,4-5)[5], eu estava profundamente desolada, mas sabia que tudo que sentia era muito pequeno diante da dor da mãe, a sra. Vera Lúcia, do pai, o sr. Reginaldo e da família das duas crianças inocentes, que morreram carbonizadas, enquanto dormiam num colchonete, no chão de um pequeno barraco. Estefânia adorava viver em Dandara. Ficava feliz quando a mãe dizia: hoje vamos para a Dandara. Na última tarde em que viveu, Estefânia disse: “Mamãe, se Deus quiser, nós estamos quase conseguindo nossa casinha para vivermos em paz.”
No domingo, dia 14, bem cedo, um telefonema de frei Gilvander, companheiro na luta, como quem traz o pão da resistência, acordou-me e me coloquei de pé, de volta à Dandara. Por lá passamos todo o dia. Começamos pela manhã com um momento orante, através da parábola do Pai Misericordioso (Lucas 15,1-2.11-32). Este Evangelho reforçou nossa indignação, diante do tratamento dado pela polícia e pelos Meios de Comunicação à mãe das duas crianças que morreram. Como pode uma mãe de quatro filhos, sem casa para morar, depois de perder duas filhas carbonizadas, ser levada à prisão e, presa, ficar algemada da meia-noite ao meio-dia, até ser empurrada para dentro de uma pequena cela no CERESP, de Belo Horizonte, onde já havia outras 21 mulheres? Por que o Estado brasileiro insiste em tratar os pobres como “caso de polícia”? Por que a mídia, sem nenhum processo prévio, acusa e criminaliza as pessoas, multiplicando suas dores e induzindo a opinião pública, para não perceber as causas mais profundas que levaram à tragédia? “A mãe foi a culpada!”, bradou a mídia aos quatro ventos. Assim, arrumava um bode expiatório, que criava uma cortina de fumaça impedindo ver as causas profundas do acontecido.  
Acompanhamos, todo o dia do domingo, a presença da “mídia sem compaixão”, como destacou um companheiro, que parecia apenas direcionar-se ao local do fato e colher relatos para o seu “comércio de notícias”, sem ver tantas pessoas indignadas e sofridas, sem enxergar toda a problemática social, que estava em torno do fato, que eles filmavam e fotografavam.
Ao final daquela tarde de domingo, convocamos a Ocupação para uma Assembléia Geral extraordinária e fizemos a leitura da Nota das Brigadas Populares à imprensa e à sociedade, escrita por pessoas que, profundamente sofridas, estavam vendo o ocorrido dentro do seu contexto. A nota se intitulava “Beatriz e Estefânia, duas crianças da Ocupação Dandara, mártires da luta contra a injustiça social”. Em sintonia com as irmãs de Lázaro (na Bíblia, João 11) que disseram a Jesus quando da morte de seu irmão: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”, também nós acreditamos que, se a justiça social tivesse chegado antes à Dandara, certamente esta tragédia não teria acontecido.
Nossa indignação e nossa dor eram tão grandes, que o espaço da Ocupação parecia não nos caber. Então, fomos para a rua, interditamos o trânsito e gritamos por justiça e pelo direito à moradia. Chega de tanta repressão e violência! Contudo, a polícia militar, sempre de plantão, chegou com truculência e nos fez recuar. Recuamos! Mas não desistimos da luta!
No terceiro dia, na segunda-feira, dia 15 de março, voltamos à Dandara, no final do tarde. O grupo de coordenadores/as nos esperava, para fazermos uma roda de estudo e análise das notícias sobre o fato ocorrido e que, naquele dia, circularam pelos jornais. Havia chovido muito na região da Pampulha. Eram 17h15, quando chegamos à Ocupação. Na entrada, havia um profundo silêncio. Na porta do barracão, brincavam a Brenda, o Juan e o Felter, filhos de três coordenadoras. Eles gritaram alegres nossos nomes, anunciando nossa chegada, mas estávamos extasiados, envolvidos por um profundo silêncio, que gritava e sussurrava  dentro de nós ....
É que sobre a Dandara, de uma ponta a outra da Ocupação, um Arco-íris havia surgido! 
Veio-nos à mente e ao coração a lembrança de que era o terceiro dia, em que Estefânia e Beatriz haviam partido de Dandara. Lembramo-nos da passagem bíblica de Gênesis 9,13-14.16, em que Deus faz aliança com seu povo e o arco-íris é o sinal desta aliança! Não tivemos dúvida! Para nós, tudo se confirmou! Estas duas crianças, mártires da luta contra a injustiça social, através de seu sangue derramado, no chão de Dandara, reafirmam esta aliança de Deus com a vida do povo de Dandara e com tantas Dandaras da vida. Foi no terceiro dia, que Jesus ressuscitou. Foi no terceiro dia que Abraão, após caminhar três dias, refez sua experiência de Deus e ouviu a voz de um anjo: “Não estenda a mão contra o menino! Não lhe faça nenhum mal.” (Gênesis 22,12).
Como quem experimentou a ressurreição de Jesus, esta experiência nos pediu para não calarmos. Pediu-nos para anunciá-la, porque, no terceiro dia, um arco-íris sobre Dandara confirmou a grande certeza, de que Deus renovou sua aliança e seu compromisso, com a luta justa e sublime do povo sem-casa e sem-terra da Ocupação Dandara. No terceiro dia, um arco-íris surgiu sobre Dandara! Nós vimos! Mas quando anunciamos que vimos, muitas pessoas nos disseram que também viram, não apenas o arco-íris, mas Deus nos visitando! Não somente vimos, mas acreditamos: Deus renovou sua aliança com a luta de Dandara! Nenhuma autoridade tem mais moral para autorizar a polícia a expulsar o povo de lá. Deus decretou: a terra de Dandara é para usufruto das 887 famílias que a ocupam, há quase um ano. Beatriz e Estefânia vivem em nós! Com o sangue de duas crianças, a terra e a luta de Dandara se tornaram mais sagradas. Olha a glória de Deus brilhando entre nós! Quem puder entender, entenda.
Belo Horizonte, 21 de março de 2010.





[1]  Advogada Popular. mrosariodeoliveira@gmail.com.
[2] Frei e padre carmelita; mestre em Exegese Bíblica; professor de Teologia Bíblica do Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA -, em Belo Horizonte, MG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br e www.gilvander.org.br
[3] “Nisso, saiu do trono uma voz forte. E ouvi: “Esta é a tenda de Deus com os homens. Ele vai morar com eles. Eles serão o seu povo e ele, o Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele vai enxugar toda lágrima dos olhos deles, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor. Sim! As coisas antigas desapareceram!””
[4] “Javé disse: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel, o território dos cananeus, heteus ... O clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e eu estou vendo a opressão com que os egípcios os atormentam.”
[5] “O profeta Elias continuou a caminhar mais um dia pelo deserto. Por fim, sentou-se debaixo de uma árvore e desejou a morte, dizendo: “Chega, Javé! Tira a minha vida, porque eu não sou melhor que meus pais”. Deitou-se debaixo da árvore e dormiu. Então um anjo o tocou e lhe disse: “Levante-se e coma”.

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