domingo, 18 de setembro de 2016

A PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA E O DIREITO DE INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO.




A PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA E O DIREITO DE  INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO.
Maria do Rosário de Oliveira Carneiro[1]



O presente texto pretende levantar uma reflexão e contribuir com muitas outras reflexões que estão a caminho na luta pela defesa dos direitos humanos da população em situação de rua. Não pretendo, de maneira alguma, defender a rua como espaço de moradia, mas apenas reconhecer que a pessoa em situação de rua, enquanto se encontra utilizando a rua como espaço de moradia, tem garantido o direito fundamental de inviolabilidade de domicílio assegurado no rol dos direitos fundamentais da Constituição brasileira. Reconhecer que estas pessoas, vítimas da exclusão e da extrema pobreza, ao serem forçadas a se submeterem a tal realidade, estão sendo violadas em seus direitos fundamentais de muitas maneiras.

A inviolabilidade do domicílio é uma garantia constitucional, positivada na atual constituição brasileira, no artigo 5º, inciso XI, segundo o qual a casa é asilo inviolável da pessoa, ninguém nela podendo entrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

A LINDB, Lei de introdução ao Direito brasileiro[2], no artigo 7º, parágrafo 8º, afirma que quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se encontre[3].

Neste mesmo sentido e com maior clareza, o artigo 73 do Código Civil brasileiro[4] garante: “Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada”.

Embora o próprio Código Civil defina também domicílio como o lugar onde a pessoa estabelece a residência com ânimo definitivo (art. 70 ) o mesmo código não é taxativo com relação ao elemento vontade. Haja vista a definição do artigo 73 acima exposta. Também a doutrina pátria assim o considera, chegando a reconhecer que muitas vezes não é o domicílio voluntário (escolhido pela própria pessoa), mas o necessário, imposto pela realidade em que a pessoa se encontre:

“As vezes o domicílio não traduz esta liberdade de ação do indivíduo, mas provém da sua condição individual, em razão da dependência em que se encontre (...). Vigorando tal situação, não se tem o domicílio como uma conseqüência de uma atitude voluntária, mas, ao revés, ao condição de dependência ou estado impõe-se necessariamente e é por isso que se qualifica de domicílio necessário”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva, 2004).

O Decreto federal 7.053 de 2009, que instituiu a Política Nacional da População em situação de rua traz uma definição/conceito para esta população, a saber:

Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”[5].

Considerando a definição do decreto, a população em situação de rua utiliza-se dos logradouros públicos e muitas vezes áreas degradadas “ou abandonadas” como espaço de moradia. Ou seja, esta população não tem uma residência habitual e é na rua que se encontra na maioria das vezes, o que para o código civil, importa o lugar onde ela se encontre. Não determina que seja, casa, apartamento, um barraco, uma marquise ou a própria rua. É o lugar onde a pessoa for encontrada, cujo lugar por ela é utilizado como residência.

No foco do entendimento doutrinário, para a pessoa em situação de rua, a rua ou o lugar onde ela se encontra e utiliza como moradia temporária, é o domicílio necessário, muitas vezes a única alternativa imposta pela situação de extrema pobreza e exclusão em que ela se encontra.

Voltando para o direito fundamental constitucional de garantia de inviolabilidade de domicílio e compreendendo que, para a pessoa em situação de rua o lugar onde ela se encontra e que utiliza como moradia naquele momento é sua residência/domicílio, entendemos que este lugar é inviolável e que deve ser respeitado por policiais, guardas municipais, ou por quem quer que seja, pelas exigências garantidas no artigo 5º, XI da Constituição brasileira atual, ou seja, ninguém nela podendo entrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

Temos assistido e lutado muito contra diversos tipos de violações aos direitos das pessoas em situação de rua em todo Brasil. Um alto número de homicídios e tentativas de homicídios, violência institucional, etc. Muitas vezes, a pessoa que se encontra na rua, submetida a fazer da rua o seu espaço de moradia, é vista com total intolerância e preconceito. Os tipos de violências são os mais diversos possíveis, desde o atear fogo ao recolhimento forçado de seus pertences como roupas, documentos, remédios, cães, etc.

Muitas são as denúncias de policiais militares que, amparando ações de prefeituras municipais adentram nos espaços onde as pessoas em situação de rua se encontram e sem o mínimo de respeito, chegam, não só a levar todos os pertences e destruir seu mínimo de estrutura, mas a cometerem abuso de autoridade, inclusive com violência física.

O fato é que se não existe o consentimento do morador, se não é caso de flagrante delito, desastre, para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial, o espaço em que se encontra a pessoa em situação de rua, por ela utilizado como moradia/residência, mesmo que de forma temporária, não pode ser violado, tem que ser respeitado como direito fundamental. 


[1] Advogada Popular, integrante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares. Pós graduada em Direitos Humanos e Cidadania. mrosariodeoliveira@gmail.com
[2] Decreto Lei 4.657 de 4 de setembro de 1942.
[3] Segundo o Código Civil brasileiro, o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo. Se, porém, a pessoa tiver diversas residências onde alternadamente viva, qualquer uma delas será considerada seu domicílio (Art. 70 e 71 Código Civil brasileiro).
[4] Lei 10.406 de 2002.
[5] Artigo 1, parágrafo único do Decreto Federal 7.053 de 2009.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DAS OSCIPs E DEMAIS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS.

IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DAS OSCIPs E DEMAIS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS.

 I – DA CONSULTA

Tenho sido consultada sobre a viabilidade de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e Organizações da Sociedade Civil, sem fins lucrativos (OSCs), gozarem de imunidades e isenções tributárias. Apresento breves considerações acerca do tema.

II – DO DIREITO

 O tema em destaque está inserido em um contexto maior, denominado tributação do terceiro setor, aquele composto por entidades da sociedade civil de fins públicos e não lucrativos. Esse terceiro setor coexiste com o primeiro setor, que é o Estado e o segundo setor, que é o mercado. Uma questão superada no mundo jurídico é o fato de que o texto, enquanto conjunto de enunciados prescritivos, não se confunde com a norma, juízo de significação a ser construído a partir da leitura dos textos, tendo por base uma interpretação sistêmica e constitucional. Com base nestas premissas deve-se olhar a questão imunizatória que se impõe a atual Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 150, VI, “a”, § 2º, que assim dispõe: “Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) VI – Instituir impostos sobre: a) Patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; (...) § 2º A vedação do inciso VI, “a”, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.” Também a Constituição brasileira em seu artigo 195, § 7º, preceitua: “Art. 195, § 7º. São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei”. Superada a questão técnica da expressão “isenção,” visto que é pacífico jurisprudencialmente e doutrinariamente o entendimento de que o § 7º, acima referido, ao falar de isenção está tratando de imunidade. O fato é que determinadas entidades que desenvolvem e fomentam atividades de interesse público sem fins lucrativos estão acobertadas por uma ampla imunidade tributária fundamentada em uma interpretação sistêmica dos artigos 150, VI, “a”, § 2º e 195, § 7º, ambos da Constituição federal, incluindo aí os impostos e as contribuições sociais em sentido amplo. Interpretação diferente disso contraria o interesse público que subjaz ao texto constitucional, pois a interpretação dos preceitos imunizatórios, nesse sentido, há que ser ampla. A interpretação das imunidades, conforme o ensinamento de Regina Helena Costa deve ser feita de modo a efetivar o princípio ou liberdade por ela densificado, dando, portanto, a eficácia por ela protegida. Deve ser efetuada na exata medida para fazer surgir dela o valor albergado. No caso em questão os preceitos imunizatórios do art. 150, VI, “a”, § 2º e 195. § 7º da Constituição federal protegem o desenvolvimento e fomento das atividades de interesse público exercido pelas OSCIPs que, de certo modo, substitui obrigações que inicialmente caberia ao próprio Estado e, como lembra Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o Estado paulatinamente vai atribuindo tal missão de desenvolver determinados serviços públicos na área social à iniciativa privada através de Termos de Parcerias. Tributar tais serviços é a mesma coisa que o Estado tributar a si próprio. Zanella di Pietro também recorda que os teóricos da Reforma do Estado incluem as entidades, consideradas “paraestatais”, dentre elas as OSCIPs, no que denominam de terceiro setor, assim entendido aquele que é composto por entidades da sociedade civil de fins públicos e não lucrativos . Precisamente, destaca Di Pietro, “pelo interesse público da atividade, recebe proteção e, em muitos casos, ajuda por parte do Estado, dentro da atividade de fomento ”, atendendo requisitos impostos pela lei, o que lhe confere títulos ou qualificação como no caso das OSCIPs, de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Teóricos da Reforma do Estado, sem descartar a expressão terceiro setor, incluem tais entidades entre as “públicas não estatais” no sentido de que são públicas porque prestam atividade de interesse público e não estatal porque não integram a Administração Pública direta ou indireta. As imunidades, por estarem vinculadas à proteção dos direitos fundamentais, avoca o princípio “in dubio pro libertate” e toda interpretação acerca das mesmas deve garantir os direitos de liberdade e os princípios de justiça, em especial a capacidade contributiva equilibrando com a segurança jurídica. Neste sentido, os direitos fundamentais protegidos por tais entidades são todos os seus objetivos precisos e claros, constantes de seu Estatuto Social e de sua reconhecida prática de exercício de atividade de interesse público. Importa reiterar que a interpretação dos preceitos imunizatórios postos no texto Constitucional há que ser efetivada de forma ampla. Nesse sentido, tanto os Tribunais superiores quanto a doutrina defendem a interpretação ampla para as imunidades. Importa destacar uma das decisões do Superior Tribunal de Justiça que perfeitamente se agasalha ao caso em tela: Ag. Rg. no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 187.172 - DF (2012/0117403-3) RELATOR: MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO AGRAVANTE: DISTRITO FEDERAL PROCURADORA: ÚRSULA RIBEIRO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA E OUTRO(S) AGRAVADO: ASSOCIAÇÃO DAS FILHAS DE NOSSA SENHORA DO MONTE CALVÁRIO ADVOGADO: ERICH ENDRILLO SANTOS SIMAS E OUTRO(S) EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. INSTITUIÇÃO DE ENSINO SEM FINS LUCRATIVOS. IMUNIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE, FUNDADO NAS PROVAS DOS AUTOS E EM PERÍCIA TÉCNICA, CONCLUI PELO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 14 DO CTN. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. EXIGÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DO CERTIFICADO DE ENTIDADE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, PELO TRIBUNAL A QUO, QUE DESATENDE À FINALIDADE DA NORMA IMUNIZANTE. AGRAVO REGIMENTAL DO DISTRITO FEDERAL DESPROVIDO. 1. A incidência da norma imunizante constante no art. 150, VI, c da CF/88 e 9º, IV, c do CTN, além dos requisitos do art. 14 do CTN, deve levar em consideração a interpretação teleológica do dispositivo normativo, de modo a alcançar a diretriz hermenêutica que, de maneira firme e exata, salvaguarde, efetive e densifique o princípio, o valor ou a liberdade albergada pelo dispositivo. 2. A imunidade tributária conferida às instituições de assistência social sem fins lucrativos leva em consideração seu propósito elementar de servir à coletividade, colaborando com o Poder Público no exercício de funções precipuamente estatais e suprindo, dessa forma, as deficiências prestacionais. 3. Condicionar a concessão de imunidade tributária à apresentação do certificado de entidade de assistência social, quando a perícia técnica confirma o preenchimento dos requisitos legais, implica acréscimo desarrazoado e ilegal de pressupostos não previstos sequer em lei, mormente quando o próprio texto constitucional prevê como condicionante apenas a inexistência de finalidade lucrativa para que o sujeito seja contemplado com o benefício fiscal. 4. O Tribunal a quo consignou, a partir da análise de provas carreadas aos autos, inclusive provas periciais, estar demonstrado que a recorrida enquadra-se no conceito de instituição de ensino sem fins lucrativos, uma vez que preenche plenamente os requisitos previstos no art. 14 do CTN. 5. A conclusão assentada no acórdão recorrido encontra-se ancorada na análise do conjunto fático-probatório, de modo que para sua reversão seria necessário o reexame de fatos e provas, circunstância vedada pelo enunciado 7 da Súmula de jurisprudência desta Corte. 6. Agravo Regimental do DISTRITO FEDERAL desprovido. Documento: 33827650 - EMENTA / ACORDÃO - Site certificado - DJe: 27/02/2014 Página 1 de 2 Superior Tribunal de Justiça ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da PRIMEIRA Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao Agravo Regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina, Ari Pargendler e Arnaldo Esteves Lima votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília/DF, 18 de fevereiro de 2014 (Data do Julgamento). NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO MINISTRO RELATOR A jurisprudência acima trata do artigo 150, VI, “c” da Constituição, mas a essência e a interpretação é a mesma para o caso em tela. Leva em consideração a interpretação teleológica da norma. Geralmente, as OSCIPs realizam também atividades de assistência social e/ou de educação. Suas atividades são de interesse público, em cooperação com os entes da federação. Realizam, em cooperação com o Estado, a missão de efetivar direitos fundamentais. Portanto, é perfeitamente aplicável às OSCIPs o artigo 150, VI, “a” da Constituição Federal, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, instituir impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros. Considerando que a OSCIP pode administrar também recurso público na execução de suas finalidades, não lhe assegurar a imunidade constitucional aqui defendida, seria violar a garantia constitucional das imunidades recíprocas. III. I – DA LEI Nº 9.790 DE 23 DE MARÇO DE 1999 A Lei 9.790 de 1999 dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e também institui o termo de parceria, instrumento que formaliza o trabalho em cooperação entre o Estado (Poder Público) e as OSCIPs. O artigo 3º do mencionado diploma legislativo define os objetivos sociais que devem orientar as OSCIPs e as finalidades atendidas pelas pessoas jurídicas para que possa receber tal qualificação. O artigo 3º também expressa com clareza que as OSCIPs, e a doutrina reconhece isto, com a qualificação, tornam-se uma longa manus do Poder Público, pois se trata de uma organização da iniciativa privada exercendo em parceria com o Poder Público, relevante missão de interesse social. José dos Santos Carvalho Filho, ao tratar do tema da gestão por colaboração e das OSCIPs, afirma que estas desenvolvem ações de utilidade pública, “reconhecendo que sua atividade se preordena ao interesse coletivo, o Governo delega, a tais entidades algumas tarefas que lhe são próprias, como forma de descentralização e maior otimização dos serviços prestados”. A imunidade constitucional busca resguardar as atividades de interesse público e por essa motivação visa não onerar atividades que gerem benefícios diretos a sociedade, como no caso da Consulente e das OSCIPs, que em suas atividades atendem e contribuem com a efetivação de direitos fundamentais, obrigação primordial do Estado. Os preceitos imunizatórios do artigo 150, VI, “a” (...) da atual Constituição brasileira  protegem o fomento das atividades de interesse público exercido pelas OSCIPs, pois estas substituem e/ou colaboram com um atuar que inicialmente cabe ao próprio Estado. Embora a Lei 9.790 de 1999, que instituiu as OSCIPs, não tenha regulamentado acerca dos eventuais benefícios fiscais que poderiam ser concedidos às entidades assim qualificadas, a supremacia da Constituição e a consolidada interpretação ampla dos preceitos imunizatórios confirmada pela doutrina e jurisprudência brasileira abrigam perfeitamente as OSCIPs e lhes asseguram tais imunidades pela essência de seus objetivos e finalidades, no trabalho em cooperação com o Estado, assegurando à coletividade a efetivação de direitos fundamentais. Ademais, o instituto jurídico da imunidade tributária protege os valores constitucionais albergados na Carta Magna, isto é, imuniza a essência e não a forma, por isto que imune é a liberdade de expressão e não o livro em si; imune não é a entidade em si (OSCIP, Organização Social, Fundação), mas os seus objetivos essenciais, sem fins lucrativos, o fato de exercer atividade de interesse público, fomentada pelo Estado através dos chamados termos de parcerias. Por isso, tais entidades são imunes a impostos e contribuições sociais nos termos do artigo 150, VI, “a” e 195, § 7º da Constituição Federal, um corolário lógico-jurídico das imunidades recíprocas conferidas aos entes da federação. Relevante dizer também que as OSCIPs são entidades sem fins lucrativos, como as demais organizações da sociedade civil e, além da possibilidade da imunidade tributária assegurada no artigo 150, VI, “a” e 195, § 7º da Constituição Federal (imunidade recíproca), gozam também da imunidade garantida no artigo 150, VI, “c” da Constituição, se forem instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos e atendam os requisitos do artigo 14 do Código Tributário Nacional. Importante ressaltar a correta interpretação do que significa ser de educação, de assistência social e sem fins lucrativos para gozar de tal imunidade. 

CONCLUSÃO

Por todo o exposto, é constitucionalmente e legalmente viável a aplicação da imunidade tributária recíproca assegurada na atual Constituição brasileira às OSCIPs. O Instituto jurídico da imunidade protege os valores constitucionais assegurados na Carta Magna brasileira, isto é, imuniza a essência e não a forma. Nesse sentido, os objetivos sociais legalmente defendidos e efetivados pelas OSCIPs são a concretização da obrigação estatal de fazer, ou seja, de executar direitos fundamentais de relevante interesse público. As OSCIPs não exploram atividade econômica na forma do artigo 173 da Constituição brasileira, mas exercem atividade de interesse público fomentada pelo próprio Estado e por isso são imunes a determinados tributos, nos termos do artigo 150, VI, “a” e 195, § 7º da Constituição federal brasileira. Por ser corolário lógico-jurídico das imunidades recíprocas conferidas aos entes da federação não é demais repetir: as OSCIPs são uma espécie de “longa manus” do Estado, na medida em que executa atividades de interesse público. Portanto, os entes da Federação, União, Estados e Municípios, não somente devem lhe assegurar tal imunidade, mas restituir valores pagos indevidamente a título de tributos dos quais são imunes, pois trata-se de um dever constitucional dos entes da Federação e um direito constitucional das OSCIPs, e das OSCs que atendam aos preceitos constitucionais e legais. A imunidade tributária que a Constituição assegura às OSCIPs e demais organizações da sociedade civil sem fins lucrativos não se trata de nenhuma benesse ou tratamento tributário diferenciado. Trata-se de um tratamento igualitário isonômico, de justiça tributária, pois tais entidades realizam trabalhos que deveriam ser realizados pelo Estado e em muito contribuem para assegurar a efetividade dos objetivos da Constituição brasileira, sobretudo o de erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades sociais (Art. 3º, III).

Belo Horizonte, 07 de setembro de 2016.

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro Advogada OAB/MG 127.040

sexta-feira, 22 de abril de 2016

ORIENTAÇÃO AOS EMPREENDIMENTOS DE CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS SOBRE A REALIZAÇÃO DO CADASTRO TÉCNICO FEDERAL (CTF) DO IBAMA



ORIENTAÇÃO AOS EMPREENDIMENTOS DE CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS SOBRE A REALIZAÇÃO DO CADASTRO TÉCNICO FEDERAL (CTF) DO IBAMA



As atividades desenvolvidas pelos catadores de materiais recicláveis e suas organizações não são atividades potencialmente poluidoras ou utilizadoras de recursos ambientais, mas, ao contrário, são atividades amparadas pelo princípio do Protetor-Recebedor da Política Nacional de Resíduos Sólidos, lei 12,305 de 2010.




DOS FATOS


As Organizações de Catadores de Materiais Recicláveis, associações e cooperativas, vêm recebendo notificações do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), exigindo dessas entidades a realização do Cadastro Técnico Federal (CTF), sob a alegação de que as atividades desenvolvidas pelos catadores e suas organizações são Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais – CTF/APP.

O Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e o Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável (INSEA), por sua assessoria jurídica, ao tomar conhecimento de tal exigência, já se posicionou pedindo providências aos órgãos competentes, no sentido de expedir regulamentação/orientação acerca do tratamento legal às cooperativas e associações de Catadores no que se refere ao CTF/APP.

Faz-se necessário e urgente que o MMA (Ministério do Meio Ambiente) e o IBAMA, nos termos de suas competências, declarem que as cooperativas e associações de catadores de materiais recicláveis não exercem Atividades Potencialmente Poluidoras e não são Utilizadoras de Recursos Ambientais e que, portanto, não são passiveis do referido Cadastro, tão pouco, devedoras de qualquer taxa ou tributo. Ao contrário, as organizações de catadores, desenvolvem atividades amparadas pelo Princípio do Protetor-Recebedor da Política Nacional de Resíduos Sólidos, possuindo, créditos perante o Estado pelos serviços de proteção ambiental prestados, há décadas, em todo território nacional.

Considerando a importância de regulamentar e orientar a nível nacional tal questão, o MMA e/ou o IBAMA, no âmbito de suas competências, devem declarar que as atividades desenvolvidas pelos catadores de materiais recicláveis em suas associações e cooperativas, não são “Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais – CTF/APP”, mas, justamente o contrário, são atividades de proteção ao meio ambiente e cuidado com os recursos ambientais.


DOS FUNDAMENTOS


Os Catadores de Materiais Recicláveis, organizados no Brasil em Cooperativas e Associações, empreendimentos econômicos solidários, vêm, há décadas, desenvolvendo um trabalho de extrema relevância para o meio ambiente, na medida em que evita, diariamente, que toneladas de materiais recicláveis sejam despejados em aterros e lixões e dão destino ambientalmente adequado nos termos da lei 12.305 de 2010, reaproveitando, reutilizando, reciclando e contribuindo para o aumento da vida útil dos aterros sanitários e dos recursos naturais.

A Ocupação dos Catadores é reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego desde 2002, como profissão, segundo a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). A PNRS acentua a importância do trabalho dos Catadores e estabelece, como em um de seus princípios, o “reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania.” A efetivação deste princípio se dá com o trabalho cotidiano dos Catadores e suas organizações.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei 12.305 de 2010, que integra a Política Nacional de Meio Ambiente, inovou ao trazer não apenas o princípio do “poluidor-pagador”, mas também o princípio do “protetor-recebedor,” em seu artigo 6º, inciso II. Nesta lógica, quem polui paga e quem protege, recebe. Esta é uma das sabedorias da Política Nacional de Resíduos Sólidos, pois estimula a proteção ao meio ambiente.

Os Catadores de Materiais Recicláveis, a partir da histórica luta de seu movimento e entidades parceiras, como é o INSEA, têm sido reconhecidos, na execução da política de resíduos sólidos, como protetores do meio ambiente e por isso recebedores de incentivos, fomentos e uma série de projetos e atividades, nos âmbitos federal, estaduais e municipais, que visam fortalecer e ampliar o seu trabalho e de suas organizações.

Iniciativas como a Criação do Comitê Interministerial para a Inclusão Social e Econômica dos Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis (CIISC), instituído pelo Decreto federal nº 7.405 de 2010; do Programa Pró-Catador, instituído pelo mesmo Decreto; o Prêmio Cidade Pró-Catador, Instituído Pela Secretaria Geral da Presidência; o Projeto Cataforte que visa à estruturação de Negócios Sustentáveis em Redes Solidárias, por meio de apoio e fomento às ações de inclusão produtiva de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis; o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) – Modalidade Pronatec Catador; Programas de Coleta Seletiva Solidária, dentre outros, tem fundamento precípuo no Princípio do Protetor–Recebedor, cujo princípio ampara o trabalho dos Catadores de Materiais Recicláveis e suas organizações, como as  associações e cooperativas, reconhecendo-os como protetores do meio ambiente.

A Lei 6.938 de 1981, Política Nacional do Meio Ambiente, assim dispõe: “é sujeito passivo da TCFA todo aquele que exerça as atividades constantes do Anexo VIII desta lei”. O anexo VIII,  não inclui as atividades da reciclagem e reutilização de materiais recicláveis.

Também não há tipificação das atividades desenvolvidas pelos catadores e suas organizações na Instrução Normativa do IBAMA, nº 6 de 24 de março de 2014, pelos mesmos fundamentos acima apresentados.

Ocorre que se tal Cadastro for exigido e as Cooperativas e Associações de Catadores tiverem que declarar que exercem Atividades Potencialmente Poluidoras ou que são Utilizadoras de Recursos Ambientais, uma contradição imensa se apresentará diante de toda legislação ambiental e de resíduos sólidos nacional, pacificamente reconhecedoras dos catadores como beneficiários do princípio do “protetor – recebedor.”

Em Minas Gerais, por exemplo, existe uma política denominada Bolsa Reciclagem, Lei nº 19.823, de 22 de novembro de 2011, que tem por objetivo o incentivo à reintrodução de materiais recicláveis em processos produtivos, com vistas à redução da utilização de recursos naturais e insumos energéticos, com inclusão social de catadores de materiais recicláveis, uma forma de pagamento pelos serviços ambientais de proteção prestados pelos catadores e suas organizações e, ao mesmo tempo, o órgão do IBAMA neste estado, tem notificando estes mesmos grupos para que se cadastrem como quem exerce atividade potencialmente poluidora e pague a respectiva taxa.

Percebe-se equívocos e desinformações por parte dos técnicos do IBAMA acerca do trabalho desenvolvido pelos catadores e da legislação de resíduos sólidos. Talvez, mais que isto, a falta de uma orientação regulamentada sobre a questão, para que os técnicos do IBAMA possam seguir, é o que se apresenta como urgente, o que já foi solicitado pelo MNCR e pelo INSEA ao MMA e ao IBAMA.


DA ORIENTAÇÃO


Diante do exposto, sugerimos às Associações e Cooperativas de Catadores de Materiais Recicláveis, bem como aos gestores públicos, ao serem notificadas pelo IBAMA para que realizem o CTF/APP, que informe ao órgão do IBAMA de sua cidade e/ou região o conteúdo desta orientação ou procure a assessoria jurídica do INSEA e do MNCR, situada em Minas Gerais, Belo Horizonte.

Belo Horizonte, 29 de fevereiro de 2016.
Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – OAB/MG 127.040
Assessoria jurídica - INSEA/MNCR