A PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA
E O DIREITO DE INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO.
O presente
texto pretende levantar uma reflexão e contribuir com muitas outras reflexões que
estão a caminho na luta pela defesa dos direitos humanos da população em situação
de rua. Não pretendo, de maneira alguma, defender a rua como espaço de moradia,
mas apenas reconhecer que a pessoa em situação de rua, enquanto se encontra
utilizando a rua como espaço de moradia, tem garantido o direito fundamental de
inviolabilidade de domicílio assegurado no rol dos direitos fundamentais da Constituição
brasileira. Reconhecer que estas pessoas, vítimas da exclusão e da extrema
pobreza, ao serem forçadas a se submeterem a tal realidade, estão sendo
violadas em seus direitos fundamentais de muitas maneiras.
A
inviolabilidade do domicílio é uma garantia constitucional, positivada na atual
constituição brasileira, no artigo 5º, inciso XI, segundo o qual a casa é asilo
inviolável da pessoa, ninguém nela podendo entrar sem o consentimento do
morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar
socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
A LINDB, Lei
de introdução ao Direito brasileiro[2],
no artigo 7º, parágrafo 8º, afirma que quando a pessoa não tiver domicílio,
considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se
encontre[3].
Neste mesmo
sentido e com maior clareza, o artigo 73 do Código Civil brasileiro[4]
garante: “Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência
habitual, o lugar onde for encontrada”.
Embora o
próprio Código Civil defina também domicílio como o lugar onde a pessoa
estabelece a residência com ânimo definitivo (art. 70 ) o mesmo código não é
taxativo com relação ao elemento vontade. Haja vista a definição do artigo 73
acima exposta. Também a doutrina pátria assim o considera, chegando a
reconhecer que muitas vezes não é o domicílio voluntário (escolhido pela
própria pessoa), mas o necessário, imposto pela realidade em que a pessoa se
encontre:
“As vezes o
domicílio não traduz esta liberdade de ação do indivíduo, mas provém da sua
condição individual, em razão da dependência em que se encontre (...).
Vigorando tal situação, não se tem o domicílio como uma conseqüência de uma
atitude voluntária, mas, ao revés, ao condição de dependência ou estado
impõe-se necessariamente e é por isso que se qualifica de domicílio
necessário”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva, 2004).
O Decreto
federal 7.053 de 2009, que instituiu a Política Nacional da População em situação
de rua traz uma definição/conceito para esta população, a saber:
“Para fins deste Decreto, considera-se população em situação
de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema,
os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de
moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas
degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou
permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou
como moradia provisória”[5].
Considerando a definição do decreto, a população em
situação de rua utiliza-se dos logradouros públicos e muitas vezes áreas
degradadas “ou abandonadas” como espaço de moradia. Ou seja, esta população não
tem uma residência habitual e é na rua que se encontra na maioria das vezes, o
que para o código civil, importa o lugar onde ela se encontre. Não determina
que seja, casa, apartamento, um barraco, uma marquise ou a própria rua. É o
lugar onde a pessoa for encontrada, cujo lugar por ela é utilizado como
residência.
No foco do entendimento doutrinário, para a pessoa em
situação de rua, a rua ou o lugar onde ela se encontra e utiliza como moradia
temporária, é o domicílio necessário, muitas vezes a única alternativa imposta
pela situação de extrema pobreza e exclusão em que ela se encontra.
Voltando para o direito fundamental constitucional de
garantia de inviolabilidade de domicílio e compreendendo que, para a pessoa em
situação de rua o lugar onde ela se encontra e que utiliza como moradia naquele
momento é sua residência/domicílio, entendemos que este lugar é inviolável e
que deve ser respeitado por policiais, guardas municipais, ou por quem quer que
seja, pelas exigências garantidas no artigo 5º, XI da Constituição brasileira atual,
ou seja, ninguém nela podendo entrar sem o consentimento do morador,
salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou,
durante o dia, por determinação judicial.
Temos
assistido e lutado muito contra diversos tipos de violações aos direitos das
pessoas em situação de rua em todo Brasil.
Um alto número de homicídios e tentativas de homicídios,
violência institucional, etc. Muitas vezes, a pessoa que se encontra na rua,
submetida a fazer da rua o seu espaço de moradia, é vista com total
intolerância e preconceito. Os tipos de violências são os mais diversos
possíveis, desde o atear fogo ao recolhimento forçado de seus pertences como
roupas, documentos, remédios, cães, etc.
Muitas são as
denúncias de policiais militares que, amparando ações de prefeituras municipais
adentram nos espaços onde as pessoas em situação de rua se encontram e sem o
mínimo de respeito, chegam, não só a levar todos os pertences e destruir seu
mínimo de estrutura, mas a cometerem abuso de autoridade, inclusive com
violência física.
O fato é que
se não existe o consentimento do morador, se não é caso de flagrante delito,
desastre, para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial, o
espaço em que se encontra a pessoa em situação de rua, por ela utilizado como
moradia/residência, mesmo que de forma temporária, não pode ser violado, tem
que ser respeitado como direito fundamental.
[1] Advogada
Popular, integrante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares. Pós
graduada em Direitos Humanos e Cidadania. mrosariodeoliveira@gmail.com
[2] Decreto
Lei 4.657 de 4 de setembro de 1942.
[3] Segundo
o Código Civil brasileiro, o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela
estabelece a sua residência com ânimo definitivo. Se, porém, a pessoa tiver
diversas residências onde alternadamente viva, qualquer uma delas será
considerada seu domicílio (Art. 70 e 71 Código Civil brasileiro).
[4] Lei
10.406 de 2002.
[5] Artigo
1, parágrafo único do Decreto Federal 7.053 de 2009.
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