domingo, 18 de setembro de 2016

A PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA E O DIREITO DE INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO.




A PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA E O DIREITO DE  INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO.
Maria do Rosário de Oliveira Carneiro[1]



O presente texto pretende levantar uma reflexão e contribuir com muitas outras reflexões que estão a caminho na luta pela defesa dos direitos humanos da população em situação de rua. Não pretendo, de maneira alguma, defender a rua como espaço de moradia, mas apenas reconhecer que a pessoa em situação de rua, enquanto se encontra utilizando a rua como espaço de moradia, tem garantido o direito fundamental de inviolabilidade de domicílio assegurado no rol dos direitos fundamentais da Constituição brasileira. Reconhecer que estas pessoas, vítimas da exclusão e da extrema pobreza, ao serem forçadas a se submeterem a tal realidade, estão sendo violadas em seus direitos fundamentais de muitas maneiras.

A inviolabilidade do domicílio é uma garantia constitucional, positivada na atual constituição brasileira, no artigo 5º, inciso XI, segundo o qual a casa é asilo inviolável da pessoa, ninguém nela podendo entrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

A LINDB, Lei de introdução ao Direito brasileiro[2], no artigo 7º, parágrafo 8º, afirma que quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se encontre[3].

Neste mesmo sentido e com maior clareza, o artigo 73 do Código Civil brasileiro[4] garante: “Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada”.

Embora o próprio Código Civil defina também domicílio como o lugar onde a pessoa estabelece a residência com ânimo definitivo (art. 70 ) o mesmo código não é taxativo com relação ao elemento vontade. Haja vista a definição do artigo 73 acima exposta. Também a doutrina pátria assim o considera, chegando a reconhecer que muitas vezes não é o domicílio voluntário (escolhido pela própria pessoa), mas o necessário, imposto pela realidade em que a pessoa se encontre:

“As vezes o domicílio não traduz esta liberdade de ação do indivíduo, mas provém da sua condição individual, em razão da dependência em que se encontre (...). Vigorando tal situação, não se tem o domicílio como uma conseqüência de uma atitude voluntária, mas, ao revés, ao condição de dependência ou estado impõe-se necessariamente e é por isso que se qualifica de domicílio necessário”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva, 2004).

O Decreto federal 7.053 de 2009, que instituiu a Política Nacional da População em situação de rua traz uma definição/conceito para esta população, a saber:

Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”[5].

Considerando a definição do decreto, a população em situação de rua utiliza-se dos logradouros públicos e muitas vezes áreas degradadas “ou abandonadas” como espaço de moradia. Ou seja, esta população não tem uma residência habitual e é na rua que se encontra na maioria das vezes, o que para o código civil, importa o lugar onde ela se encontre. Não determina que seja, casa, apartamento, um barraco, uma marquise ou a própria rua. É o lugar onde a pessoa for encontrada, cujo lugar por ela é utilizado como residência.

No foco do entendimento doutrinário, para a pessoa em situação de rua, a rua ou o lugar onde ela se encontra e utiliza como moradia temporária, é o domicílio necessário, muitas vezes a única alternativa imposta pela situação de extrema pobreza e exclusão em que ela se encontra.

Voltando para o direito fundamental constitucional de garantia de inviolabilidade de domicílio e compreendendo que, para a pessoa em situação de rua o lugar onde ela se encontra e que utiliza como moradia naquele momento é sua residência/domicílio, entendemos que este lugar é inviolável e que deve ser respeitado por policiais, guardas municipais, ou por quem quer que seja, pelas exigências garantidas no artigo 5º, XI da Constituição brasileira atual, ou seja, ninguém nela podendo entrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

Temos assistido e lutado muito contra diversos tipos de violações aos direitos das pessoas em situação de rua em todo Brasil. Um alto número de homicídios e tentativas de homicídios, violência institucional, etc. Muitas vezes, a pessoa que se encontra na rua, submetida a fazer da rua o seu espaço de moradia, é vista com total intolerância e preconceito. Os tipos de violências são os mais diversos possíveis, desde o atear fogo ao recolhimento forçado de seus pertences como roupas, documentos, remédios, cães, etc.

Muitas são as denúncias de policiais militares que, amparando ações de prefeituras municipais adentram nos espaços onde as pessoas em situação de rua se encontram e sem o mínimo de respeito, chegam, não só a levar todos os pertences e destruir seu mínimo de estrutura, mas a cometerem abuso de autoridade, inclusive com violência física.

O fato é que se não existe o consentimento do morador, se não é caso de flagrante delito, desastre, para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial, o espaço em que se encontra a pessoa em situação de rua, por ela utilizado como moradia/residência, mesmo que de forma temporária, não pode ser violado, tem que ser respeitado como direito fundamental. 


[1] Advogada Popular, integrante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares. Pós graduada em Direitos Humanos e Cidadania. mrosariodeoliveira@gmail.com
[2] Decreto Lei 4.657 de 4 de setembro de 1942.
[3] Segundo o Código Civil brasileiro, o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo. Se, porém, a pessoa tiver diversas residências onde alternadamente viva, qualquer uma delas será considerada seu domicílio (Art. 70 e 71 Código Civil brasileiro).
[4] Lei 10.406 de 2002.
[5] Artigo 1, parágrafo único do Decreto Federal 7.053 de 2009.

Nenhum comentário:

Postar um comentário